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Amamentação e Medo da Morte

Era ainda estudante de psicologia quando ouvi o seguinte relato: um garoto de 5 anos havia perdido seu avô. A explicação que lhe foi dada dizia que “o vovô era velhinho e, por isso, faleceu”. A partir daí o garoto se recusava a comer. Perguntado sobre isso, respondeu: “Se eu comer, eu cresço. Se eu crescer, eu fico adulto. Se eu ficar adulto, eu viro velhinho…e morro. Eu não quero morrer. ” Esse atrelamento tão radical entre dois núcleos fundamentais da existência humana, nutrição e morte, encontrei no atendimento à família de uma bebê recém-nascida. A queixa da mãe era de diminuição da produção do próprio leite (hipolactia), com recomendação pediátrica de complementação das mamadas.

Este atendimento foi realizado em outubro de 2008, a uma família que mora em um distrito popular, vizinho à São Paulo, que acolhe principalmente operárias e operários de fábricas, pequenos comerciantes e prestadores de serviços domésticos. Bairro de ruas estreitas e vielas, de pequenas praças e pouco verde; bastante ocupado por construções de alvenaria simples. Lugar povoado de crianças brincando nas ruas, grupos de estudantes de diferentes idades com suas mochilas nas costas, senhoras e senhores mais velhos conversando sentados em degraus nas calçadas estreitas, mães com bebês no colo que vão ou voltam do posto de saúde. Bicicletas, peruas, motos, cachorros, pombos e pipas compõem também o colorido movimento desse bairro vivaz.

Tudo isso, porém, é fortemente limitado por portas e portões inteiriços de placas metálicas, grades e cachorros ferozes que, confinados nos pequenos quintais das moradias, encarregam-se de protegê-las. Encontrei a numeração da casa que procurava diante de um desses portões inteiriços. Avistei um vão recortado no metal que permitia ler os nomes dos moradores daquele quintal coletivo, fixados sobre quatro interruptores de campainha. Todos eles pertencem à família de Wilson, pai da Beatriz, a criança recém-nascida. Toquei a campainha identificada com o nome dele. Ouvi uma voz feminina chamando por Camila, a mãe da recém-nascida Beatriz. Era a voz de Dona Maria, a avó materna que havia pedido dispensa do serviço naquele dia, para ajudar a filha e que, agora avisava-a de minha chegada.

Passados alguns instantes, Camila abriu o portão. Cumprimentamo-nos. Uma estreita escadaria subia à nossa frente unindo as quatro casas dessa moradia coletiva: a da avó paterna, a de dois tios paternos e a de Camila, com seu marido Wilson e com a pequena Beatriz, que ficava no piso térreo. Camila tranquilizou-me quanto ao cachorro que latia intensamente, dizendo que estava preso e que Beatriz não acordaria com seus latidos. Já se acostumara. Além de um pequeno banheiro na área externa, a casa possui dois cômodos internos: uma cozinha com uma pequena mesa para refeições e um quarto de casal com o berço de Beatriz. Tudo estava muito limpo e caprichado, toalhinhas e panos pintados, cantinho da Beatriz pensado e decorado com decalques infantis na parede. Espaço pequeno e modesto, cuidado com zelo e carinho.

Camila tem 24 anos, namora com Wilson desde os 18, casaram-se a 4 meses quando, então, mudou-se para esta casa, bairro novo para ela. Antes disso, morava com sua mãe e seu pai em outro município. Várias vezes queixou-se de não estar acostumada nesse bairro e de precisar de condução para ver seus pais. Tal insistência ressoava em mim como um pedido de amparo: Camila parecia sentir-se só em um lugar novo para ela e nas suas novas funções femininas, de mulher casada e de mãe.

Quando entrei na sala/cozinha, Dona Maria, a avó materna, estava bastante agitada. Havia derrubado o coador de café com água fervente sobre si mesma. Embora nada grave tivesse acontecido, Dona Maria ficou bastante constrangida e atrapalhada com a situação. Tranquilizei-a, ajudei-a nos primeiros socorros e, brincando, disse que podia esperar pelo próximo café. Esta pequena ocorrência sinalizava certa ansiedade de Dona Maria. De fato, ela estava agitada. Já a nenê, Beatriz, continuava a dormir no outro cômodo.

Camila, depois de trazer uma camiseta limpa para a mãe, sentou-se e, ao contar que há dois dias passou pelo pediatra que a orientou a complementar as mamadas porque a nenê havia ganho apenas 35 g em 14 dias, começou a chorar ininterruptamente. Aos soluços dizia que não era boa mãe, que não conseguia produzir leite, que a nenê havia passado fome, que toda vez que olhava para ela se sentia mal, culpada em dar outro leite e culpada em dar “um peito seco sem nada”… Ela estava inconsolável, aos prantos.

Dona Maria vendo a filha assim, adiantou-se e, empenhada em consolá-la, carinhosamente disse: “Ser mãe não é fácil e ela ainda veio morar longe”. Respondi: – Devagarinho e com ajuda, ela irá aprendendo a cuidar da nenê e irá se acostumando com este lugar, novo para ela. Dirigindo-me a Camila, falei: -Do mesmo modo que você está preocupada com a Beatriz que não ganhou peso suficiente, sua mãe está preocupada com você. Voltando-me para Dona Maria: – Dona Maria, não se preocupe, não, as mães logo depois de ganharem nenê choram muito. Dona Maria interrompe-me: “Ah se sei! Chorava todo dia da gravidez dessa menina (apontando para a Camila), ela nasceu de sete meses, acho que de tanto eu chorar. É que em 1985 perdi meu primeiro bebê no 6º mês de gravidez; não sabia que a bolsa tinha rompido, nem sabia que a bolsa podia vazar devagarinho. Quando vi, já era tarde. Aconteceu que eu logo engravidei da Camila em 86, e pronto: o medo de perder de novo! Quanta aflição meu Deus! ” Seus olhos marejaram. Comecei a entender a agitação que havia observado no início do atendimento: Dona Maria, revivendo experiências passadas, também se sentia desamparada.

Dona Maria não percebeu que Camila se calara. Embora não estivesse mais chorando, parecia “desligada” das queixas de sua mãe, como que cansada de ouvir as mesmas coisas, sempre a mesma história, e como se suas dores tivessem que dar a vez – ao que parece, mais uma vez – às dores de sua própria mãe.

– Camila, acho que para sua mãe você ainda é setemesinha. Ela está com vontade de chorar como você que, agorinha mesmo, estava chorando pela Beatriz. Uma achando que a outra é muito ‘fragilzinha’ e que irá morrer…

Prontamente Camila me interrompeu e tomou a palavra:

– Quando saí do Posto de Saúde com a nenê, a minha falou desesperada: “Essa menina está muito miúda, demais. Ela pode ter desidratação, vai acabar ficando internada. Pelo amor de Deus vamos dar leite logo para essa menina! É horrível a dor de perder um filho. O que eu passei não quero de jeito nenhum que você passe”. Fiquei desesperada ouvindo isso, completou Camila – e pensei: Não tem mais jeito não, vou desistir de dar o peito.

Dona Maria chorou ao ouvir o desabafo de sua filha, parecia ter compreendido a frustração de Camila em não dar de mamar, e disse: “- Eu só não quero que ela passe pelo que eu passei…”

Devolvi: – É que quando nascem os netos, as avós relembram o que viveram, tudinho de novo. Mas nada é tão igualzinho assim. Dona Maria é a mãe da Camila e a avó da Beatriz. E Camila é a Camila, mãe da Beatriz. E, agora o mais importante: a Beatriz é nenê e a Camila é mãe recém-nascida e está na quarentena precisando de apoio, para sentir menos medo. Se bem que sentir medo faz parte de ser mãe, se não como é que você protegeria a Beatriz, Camila? Ela, quando começar a engatinhar, vai querer colocar o dedinho na tomada. Se você não sentir medo por ela, não irá protegê-la. Então medo faz parte. Dirigindo-me à Dona Maria, completei: – A Camila está com medo que a Beatriz morra. A senhora perdeu um bebezinho na sua primeira gravidez. Mas sabe aquela nenezinha que nasceu com sete meses? A sua segunda filha? Ela está aqui na nossa frente, forte e saudável, teve sua primeira filhinha e pode amamentar (enfatizei o pode).

Dona Maria suspirou como se estivesse reconhecendo a Camila não como a filha prematura que lhe assustara, mas como adulta, mãe recente, desejosa de amamentar e frustrada com a perspectiva de não o conseguir.

– Seu leite secou totalmente? – Perguntei à Camila.

– Não, estou só complementando. Mas, tem um ‘nadica’ de nada. Ela mama só umas gotinhas… (voltou a chorar compulsivamente).

– Porque você está chorando agora?

– É que eu queria muito amamentar…

Fiz silêncio. A frase pareceu-me importantíssima; deixei-a ressoar e o choro ir terminando.

Enquanto aguardava, buscava entender aquele choro: por que Camila está chorando agora? Parece que o medo da morte da nenê – o medo que ela sente, não o que sua mãe sente – tornou-se consciente e, com isso, a vontade de amamentar pode transparecer lúcida e cristalina. Chorar estaria “limpando” o desejo de amamentar? Pensava, ‘metaforizando’, que o medo atávico e, neste caso, transgeracional da morte da nenê, havia invadido e soterrado o impulso materno primitivo de amamentar. O choro de Camila como que umedecia esse impulso tentando salvá-lo, mantendo-o vivo. Chorar era a forma de hidratar o impulso primitivo de nutrir, ressequido pelo peso “moral” colocado sobre ele (pensamentos como: eu devo amamentar, isto é ser boa mãe). Chorar era a forma de fazer crescer o desejo de amamentar. A consciência do medo da morte da filha permitiu distinguir e afastar duas regiões vitais sobrepostas: a morte e a nutrição. A descoberta de uma ‘pre-ocupação’ com a morte não soterraria mais a ‘ocupação’ com o aleitamento. Com isso, a vontade de amamentar brotou translúcida. A chamada “força de vontade”, também necessária à manutenção do aleitamento materno, pressupõe a consciência dos conflitos e das histórias familiares. Camila precisava fortalecer ao máximo seu desejo de amamentar, para superar não apenas seu próprio medo da fragilidade ou da morte da Beatriz, mas o medo impróprio, que não era dela, o medo que Dona Maria carregava de perder filhos.

A partir daí, da afirmação consciente de sua vontade (“é que eu queria muito amamentar”), Camila estava pronta, firme em sua autonomia (poder de decisão), para receber orientações sobre a manutenção do aleitamento materno, sobre a possibilidade de reversão da complementação.

Cerca de quinze dias depois, retornei à sua casa. Ao encerrar o atendimento, pedi sua autorização para apresentar sua experiência em um congresso. Ela concordou e disse:

– Conta lá que tudo mudou. Olha só, toda vez que eu dava mamadeira, eu falava repetindo chateada: Mamãe não pode te dar o peito. Agora eu pego a Beatriz no colo e digo: vamos mamar no peito da mamãe, bastantão, um tempão, um montão e só depois ganhar mamadeira.

A positividade da segunda forma e a construção da oração na primeira pessoa do plural, “vamos mamar”, apontaram para o elo feito entre elas!

 

 

Pai de dois: Aprendiz

O PAI DE DOIS MENINOS: APRENDIZ

São Paulo. Condomínio. Portaria. R.G. e placa do carro. Estacionamento. Calçadas curvas margeando ilhotas de gramado floridas. Aqui e ali uma e outra árvore. Portaria II. Autorização para subir. Quatro blocos dispostos em cruz e interligados internamente. Os mesmos elevadores, em uma coluna central, servem a todos os blocos. Eu me dirigia ao Bloco B.

Elevador. Desci no 9º andar. À minha frente, uma janela. À minha direita lia-se A e, à minha esquerda, C. Segui na direção do Bloco A procurando o B. Nada. Segui na direção do C. No fundo de um corredor transversal ao elevador li: D. Nada de B. Voltei à porta do elevador… Hesitei: será que não vi um possível corredor transversal deste lado A? Refiz o percurso. Nada. Duvidei da minha anotação do endereço. Mas não, na portaria ela fora confirmada! Solução: telefonei para o casal que me aguardava:

– Estou no 9º andar, vejo três letras -A, C e D- e não encontro a B. Estou meio perdida!

-Ah! Colocaram uma porta anti-incêndio em frente ao nosso corredor e a letra B ficou escondida – respondeu-me Anita.

Nisso, abriu-se a tal da porta e apareceu um menino, quatro anos talvez. Depois dele veio Anita com o telefone móvel em mãos, ainda falando comigo. Então eram eles, mãe e filho, Anita e Gustavo, que vieram me guiar. Cumprimentei-a e disse ao menino:

– Oi Gustavo, obrigada por ter vindo me buscar. Não estava encontrando seu apartamento. Que bom ver você assim crescido! A primeira vez que vim, você era nenezinho…

Já estávamos entrando na sala do apartamento. Interrompi a conversa com o menino para cumprimentar Rodrigo, o pai, e Bernardo, o bebê:

– Oi Bernardo, como você cresceu! Estive aqui quando você era bem “pititico” e “sóóóóó…” dormia. Gustavo, você também estava dormindo. Acho que tinha dado um soninho geral nas crianças da casa! Hoje está diferente: todo mundo acordado e junto aqui na sala.

Os pais, Anita e Rodrigo, haviam organizado o ambiente para que o atendimento pudesse ser ali e incluísse as duas crianças. Rodrigo estava sentado próximo ao Bernardo, que estava em uma cadeirinha para bebês e levava um brinquedo à boca. Anita sentou-se perto do marido. Gustavo tinha um tapete emborrachado, especialmente para ele, decorado com motivos infantis, encostado junto ao móvel da TV. Ele ia e voltava de seu quarto, trazendo brinquedos e dispondo-os sobre o “tapete-cidade”: estacionava carrinhos e motocicletas; criava diálogos entre bichinhos, pessoas e outros seres; colocava e retirava capa nos heróis e, de vez em quando, passava pilotando um helicóptero no céu sobre a cidade.

Logo que me sentei em frente ao Bernardo, entre o sofá onde estavam os pais e o “tapete-cidade”, Gustavo trouxe-me uma locomotiva que puxava vagões-letrinha:

– É do meu nome!

-Que legal! – respondi.

– Falta letra, perdeu. – completou.

Parênteses: o tema inicial de nossa conversa foi o das letras perdidas. Eu me perdi nos corredores do edifício por falta da letra B e, locomotivamente, Gustavo engatou nesse tema. Trouxe-me o trenzinho de letras faltantes do seu nome e, com isso, supus seu recado: “Eu também estou meio perdido” ou “Tornei-me irmão maior, perdi o lugar de pequeno da família” ou ainda “Quem sou eu, agora? Faltam algumas partes”. Gustavo estava novamente me guiando; ali já estava a trilha, ou melhor, o trilho do atendimento psicológico àquela família, sem que eu ainda o tivesse percebido claramente. De qualquer forma, mostrar-me seu trenzinho de letras faltantes era sinal da aceitação e disponibilidade de Gustavo para comigo, pessoa estranha a ele.

Nós, os adultos, conversamos sobre o final da licença maternidade; as composições domésticas e logísticas criadas para dar conta da nova rotina familiar (horários de ida e volta à pré-escola, berçário, empresa, escritório); a escolha da nova escola para o Gustavo recém-saído da creche da empresa. Especialmente a aprendizagem paterna, por vezes angustiada, de cuidar simultaneamente de duas crianças. Anita lembrou-se que a presença de sua mãe, que tirou férias do emprego para ajudá-la no início da licença maternidade, a havia tranquilizado no desafio de cuidar dos dois meninos juntos; com isso reconheceu a angústia de Rodrigo, aprendiz ainda de ser pai de dois filhos. Ele sentia-se também solitário nessa aprendizagem. Outro trilho a ser seguido neste atendimento, aliás, o mesmo, como veremos.

Enquanto conversávamos, Gustavo brincava. Quando, aberta ou veladamente, os pais o mencionavam, ele olhava para nós, interrompia suas narrativas lúdicas, sinalizava estar atento. Volta e meia eu abria o jogo, trazendo Gustavo para a conversa:

– O papai e a mamãe estão querendo entender o que estava acontecendo com você naquele dia lá, em que você ficou pulando no colo do seu pai enquanto ele falava no telefone. Você se lembra?

Em geral, ele não respondia, voltava a brincar tranquilo, como se apenas quisesse entender o que preocupava seus pais, o problema deles. Uma dessas minhas intervenções deu-se quando Anita e Rodrigo queixaram-se de que Gustavo não dormia mais na própria cama, sempre escolhendo a dos pais. A explicação mais frequente para isso é que o primeiro filho sente ciúme do nenê que dorme no quarto dos pais. Clichê psicológico. Disse a ele:

– Por que será que você anda preferindo dormir na cama do papai e da mamãe?

Desta vez ele respondeu. Neste caso o problema parecia ser dele também:

– É que… Que… Eu tive um pesadelo.

– Sério? Você se lembra dele?

Falando afoitamente e gesticulando:

– É que eu estava assim (mostrou corporalmente: em pé) e uma porta abriu sozinha. Tinha uma bola grande forçando para sair pela porta, empurrando, empurrando. Uma bola bem grande, bem grande mesmo, grande… Ia sair por cima de mim…

Gesticulando com os braços, traçava um círculo em torno de si toda vez que dizia “grande”. Com isso, as ideias de “grande” e de “redondeza” ou circularidade da bola associavam-se a ele mesmo, em sua narrativa do sonho. Em mim começaram a aparecer as primeiras possibilidades interpretativas: uma imagem onírica infantil do parto? Aproximações com seu próprio nascimento? Com o de seu irmão? Unindo seu gesto a seu relato verbal compreendi que “o grande” talvez fosse ele mesmo. O sonho dizia sim de um nascimento – do seu nascimento como irmão maior, grande. Ele era agora o recém-nascido irmão grande da família. Gustavo experimentava a dimensão, ou melhor, a esfera do grande e sua relação com o ser pequeno… Dirigindo-me aos pais, disse-lhes:

_ Toda vez que o Gustavo diz “grande”, na sua narrativa do pesadelo, ele se inclui, traça com os braços um círculo em torno de si.

Voltando-me para o Gustavo:

– Que medo deve ter dado!

– É, daí eu corri da bola. Saí correndo!

– Ufa! Que bom!

– Mas a bola vinha atrás. Eu corri. E daí vi o Bernardo no colo da minha mãe e eu pulei no colo do meu pai. E daí a gente correu e tinha um lugar com um montão de árvores… e tinha um montão de terra… um montão de terra saindo…

Rodrigo interrompeu o discurso afoito do menino, dizendo:

– Engraçado, este foi o primeiro sonho que o Gustavo nos relatou. Sonho não, pesadelo. Ele nos contou logo ao acordar, ainda assustado e… – um pouco hesitante, cuidando para não negar o que o filho dizia ter sonhado, completou: – O sonho terminava na visão da bola grande que ia atravessar a porta… não tinha continuação.

Cuidando para que o fluxo onírico do menino não se retraísse em função da ressalva de seu pai, eu disse:

-O sonho está aqui e agora, sendo narrado e sonhado de novo, com medo e tudo. A narrativa faz com que o sonho cresça e chegue em vocês. “Quem conta um conto aumenta um ponto” vale muito para contar e cuidar dos sonhos. O sonho cresceu, mas não apenas ele. O Gustavo cresceu, ou melhor, ele está amadurecendo o sonho…tentando “levezar” o pesadelo, o medo que sentiu e transmitiu a vocês naquela noite. Esta euforia agitada ao contar o sonho deixa transparecer o medo; talvez o medo de ser grande, de passar por cima do pequeno, ou de ser pequeno e ser “atropelado” pelo grande. Continuando o sonho, inventando novas partes em vigília, criando imagens posteriores à visão onírica da bola grande, ele colocou numa ordem as pessoas da família: mamães protegem seus nenês e papais, os maiores…Esta dinâmica não é a única, mas é a que o tranquiliza agora.

Anita disse:

– É, e as árvores… bem, eu adoro árvores, ele sabe disso. Anita parecia sentir-se contemplada pela introdução das árvores na narrativa do filho.

– Um presente narrado para você…- disse eu. Assim como se ele, sonhando acordado, pudesse cuidar de seu susto materno com o pesadelo dele. Na noite do pesadelo, ele não podia ser grande. Ele foi pequeno e correu para a cama de vocês. Mesmo mais calmo, ele continuou antenado com o medo, inclusive com o desconforto que o pesadelo dele causou em vocês, pais. Então, as árvores sonhadas agora, em vigília, são reparadoras, sinalizam um crescimento do Gustavo. Como se ele dissesse: “Mamãe, estou melhor, cresci um pouco e posso cuidar do seu medo por mim. Na minha visão de menino não tem só bola grande ameaçadora, tem também árvores para você.”

Rodrigo, o pai, disse:

– Ah! Sabe o que o monte de terra me lembrou? No sítio do meu pai está sendo construída uma piscina e o Gustavo sobe e desce animado naquele montanhão de terra. Não era a terra do sítio do vovô, filho? Vai ser legal quando a piscina ficar pronta…

– Eu vou e escorrego na montanha grande de terra- respondeu Gustavo mais ligado no atual estágio da construção da piscina do que na finalização dela.

Rodrigo, o aprendiz de pai de dois filhos, era quem estava vendo a piscina. Sonhava acordado com o sítio de seu pai aumentado. Casa paterna maior: seu pai, o avô de seus filhos, fazendo crescer o espaço de acolhimento familiar. Rodrigo encontrou a referência que precisava para cuidar de dois filhos ao mesmo tempo.

 

 

Avô Josué: um co-terapeuta

                       Avô Josué: um co-terapeuta

Antonio havia nascido há 15 dias.

Era horário de almoço. A Maria das Graças, mãe do neném; o Paulo, seu “namorido” (modo como ela me apresentou o pai de Antonio); e seu Josué, avô materno do pequenino, estavam em casa aguardando pelo atendimento pós-natal. Apresentei-me a todos.

Seu Josué vestia o uniforme da firma. Homem simples, trabalhador em hora de almoço:

– Uma psicóloga para atender a gente em casa?

O atendimento domiciliar pós-natal é apenas mais um acontecimento extraordinário em meio a tantos desencadeados pela chegada do recém-nascido. Tempo de novidades e de estranhamentos.

O neném chorava. Hora da mamada.

Maria das Graças preparava-se para amamentar. Antonio é seu primeiro filho. Ela, então, vinha se descobrindo como nutriz. Além dos mamilos sensíveis e doloridos, sentia medo de não produzir leite.

No dia anterior, haviam pesado o neném no Posto de Saúde:

-E o pior é que ele ganhou peso! – disse-me ela sorrindo, meio sem graça.

Escutei e pensei, buscando compreender: “ o pior?!” Como assim? Era como se o ganho de peso do Antonio desencadeasse nela a satisfação pelo filho nutrido e, ao mesmo tempo, o medo, aparentemente injustificado, de não produzir leite. Seu sorriso foi a expressão justa da alegria pelo ganho de peso do neném e “pior” foi a palavra justa para falar de si mesma: mãe recente, insegura, temerosa e cuidadosa. Supus o que poderia estar interdito, entre a alegria e o medo: o “melhor” seria não existir incertezas, o “melhor” talvez fosse controlar a alimentação do neném com mamadeira, o “melhor” talvez fosse que nada tivesse mudado: voltar a condição feminina de ter seios e não trabalhosas e dolorosas mamas! Mas não, o “pior” é que ser mãe continuaria para sempre, sem possibilidade de retorno, sem ponto final…

– O pior é que ele ganhou peso. Repeti a frase para Maria das Graças enfatizando, com ternura, o termo “pior”.

Seu Josué, que me ouvia com muita atenção, disse:

– A senhora vê o que faz a palavra. Foi a enfermeira da maternidade dizer que a barriga do bebê fazia barulho de fome, foi só dizer que o bebê estava morrendo de fome, que ela (Maria das Graças) ficou pensando coisa. O jeito de um dizer muda o pensamento do outro. Ela mesma foi falar, agora, para a senhora, que o Antônio ganhou peso e disse: “O pior é que ele ganhou peso”. Ela disse “o pior” e não “o melhor”! A palavra, por dentro, muda o que a gente faz fora. Eu acho que ela deveria dar de mamar pensando: “eu tenho leite” e não “eu não tenho”. Virar o lado negativo para o positivo; entende?

O melhor foi que, então, com esse apoio paterno, compreensivo e esperançoso, Maria das Graças chorou e disse:

– Sabe o que dói? Não é o peito, o mamilo ou sei lá mais o que. O que dói é a saudade de minha mãe. Ela faleceu há dois anos. Eu queria falar para ela que agora eu a entendo melhor; eu sei o que é ser mãe. Como é difícil dar de mamar hoje, sem saber se, amanhã, vou ter leite.

– E eu? Sem saber se vou ter emprego amanhã! – Completou Paulo, pai de Antônio.

O pequeno Antônio despertou em seus familiares outras dimensões da oralidade. Os ruídos de sua barriga, na maternidade, ecoaram a incerteza atávica pelo alimento. A torcida materna cotidiana, pela produção de leite para o neném, talvez seja o veio feminino que penetra a origem da oração em que se reza “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Vale lembrar que oral, oração e origem têm a mesma raiz latina: os,orus que significa boca.

 

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.