Amamentação e Medo da Morte

Era ainda estudante de psicologia quando ouvi o seguinte relato: um garoto de 5 anos havia perdido seu avô. A explicação que lhe foi dada dizia que “o vovô era velhinho e, por isso, faleceu”. A partir daí o garoto se recusava a comer. Perguntado sobre isso, respondeu: “Se eu comer, eu cresço. Se eu crescer, eu fico adulto. Se eu ficar adulto, eu viro velhinho…e morro. Eu não quero morrer. ” Esse atrelamento tão radical entre dois núcleos fundamentais da existência humana, nutrição e morte, encontrei no atendimento à família de uma bebê recém-nascida. A queixa da mãe era de diminuição da produção do próprio leite (hipolactia), com recomendação pediátrica de complementação das mamadas.

Este atendimento foi realizado em outubro de 2008, a uma família que mora em um distrito popular, vizinho à São Paulo, que acolhe principalmente operárias e operários de fábricas, pequenos comerciantes e prestadores de serviços domésticos. Bairro de ruas estreitas e vielas, de pequenas praças e pouco verde; bastante ocupado por construções de alvenaria simples. Lugar povoado de crianças brincando nas ruas, grupos de estudantes de diferentes idades com suas mochilas nas costas, senhoras e senhores mais velhos conversando sentados em degraus nas calçadas estreitas, mães com bebês no colo que vão ou voltam do posto de saúde. Bicicletas, peruas, motos, cachorros, pombos e pipas compõem também o colorido movimento desse bairro vivaz.

Tudo isso, porém, é fortemente limitado por portas e portões inteiriços de placas metálicas, grades e cachorros ferozes que, confinados nos pequenos quintais das moradias, encarregam-se de protegê-las. Encontrei a numeração da casa que procurava diante de um desses portões inteiriços. Avistei um vão recortado no metal que permitia ler os nomes dos moradores daquele quintal coletivo, fixados sobre quatro interruptores de campainha. Todos eles pertencem à família de Wilson, pai da Beatriz, a criança recém-nascida. Toquei a campainha identificada com o nome dele. Ouvi uma voz feminina chamando por Camila, a mãe da recém-nascida Beatriz. Era a voz de Dona Maria, a avó materna que havia pedido dispensa do serviço naquele dia, para ajudar a filha e que, agora avisava-a de minha chegada.

Passados alguns instantes, Camila abriu o portão. Cumprimentamo-nos. Uma estreita escadaria subia à nossa frente unindo as quatro casas dessa moradia coletiva: a da avó paterna, a de dois tios paternos e a de Camila, com seu marido Wilson e com a pequena Beatriz, que ficava no piso térreo. Camila tranquilizou-me quanto ao cachorro que latia intensamente, dizendo que estava preso e que Beatriz não acordaria com seus latidos. Já se acostumara. Além de um pequeno banheiro na área externa, a casa possui dois cômodos internos: uma cozinha com uma pequena mesa para refeições e um quarto de casal com o berço de Beatriz. Tudo estava muito limpo e caprichado, toalhinhas e panos pintados, cantinho da Beatriz pensado e decorado com decalques infantis na parede. Espaço pequeno e modesto, cuidado com zelo e carinho.

Camila tem 24 anos, namora com Wilson desde os 18, casaram-se a 4 meses quando, então, mudou-se para esta casa, bairro novo para ela. Antes disso, morava com sua mãe e seu pai em outro município. Várias vezes queixou-se de não estar acostumada nesse bairro e de precisar de condução para ver seus pais. Tal insistência ressoava em mim como um pedido de amparo: Camila parecia sentir-se só em um lugar novo para ela e nas suas novas funções femininas, de mulher casada e de mãe.

Quando entrei na sala/cozinha, Dona Maria, a avó materna, estava bastante agitada. Havia derrubado o coador de café com água fervente sobre si mesma. Embora nada grave tivesse acontecido, Dona Maria ficou bastante constrangida e atrapalhada com a situação. Tranquilizei-a, ajudei-a nos primeiros socorros e, brincando, disse que podia esperar pelo próximo café. Esta pequena ocorrência sinalizava certa ansiedade de Dona Maria. De fato, ela estava agitada. Já a nenê, Beatriz, continuava a dormir no outro cômodo.

Camila, depois de trazer uma camiseta limpa para a mãe, sentou-se e, ao contar que há dois dias passou pelo pediatra que a orientou a complementar as mamadas porque a nenê havia ganho apenas 35 g em 14 dias, começou a chorar ininterruptamente. Aos soluços dizia que não era boa mãe, que não conseguia produzir leite, que a nenê havia passado fome, que toda vez que olhava para ela se sentia mal, culpada em dar outro leite e culpada em dar “um peito seco sem nada”… Ela estava inconsolável, aos prantos.

Dona Maria vendo a filha assim, adiantou-se e, empenhada em consolá-la, carinhosamente disse: “Ser mãe não é fácil e ela ainda veio morar longe”. Respondi: – Devagarinho e com ajuda, ela irá aprendendo a cuidar da nenê e irá se acostumando com este lugar, novo para ela. Dirigindo-me a Camila, falei: -Do mesmo modo que você está preocupada com a Beatriz que não ganhou peso suficiente, sua mãe está preocupada com você. Voltando-me para Dona Maria: – Dona Maria, não se preocupe, não, as mães logo depois de ganharem nenê choram muito. Dona Maria interrompe-me: “Ah se sei! Chorava todo dia da gravidez dessa menina (apontando para a Camila), ela nasceu de sete meses, acho que de tanto eu chorar. É que em 1985 perdi meu primeiro bebê no 6º mês de gravidez; não sabia que a bolsa tinha rompido, nem sabia que a bolsa podia vazar devagarinho. Quando vi, já era tarde. Aconteceu que eu logo engravidei da Camila em 86, e pronto: o medo de perder de novo! Quanta aflição meu Deus! ” Seus olhos marejaram. Comecei a entender a agitação que havia observado no início do atendimento: Dona Maria, revivendo experiências passadas, também se sentia desamparada.

Dona Maria não percebeu que Camila se calara. Embora não estivesse mais chorando, parecia “desligada” das queixas de sua mãe, como que cansada de ouvir as mesmas coisas, sempre a mesma história, e como se suas dores tivessem que dar a vez – ao que parece, mais uma vez – às dores de sua própria mãe.

– Camila, acho que para sua mãe você ainda é setemesinha. Ela está com vontade de chorar como você que, agorinha mesmo, estava chorando pela Beatriz. Uma achando que a outra é muito ‘fragilzinha’ e que irá morrer…

Prontamente Camila me interrompeu e tomou a palavra:

– Quando saí do Posto de Saúde com a nenê, a minha falou desesperada: “Essa menina está muito miúda, demais. Ela pode ter desidratação, vai acabar ficando internada. Pelo amor de Deus vamos dar leite logo para essa menina! É horrível a dor de perder um filho. O que eu passei não quero de jeito nenhum que você passe”. Fiquei desesperada ouvindo isso, completou Camila – e pensei: Não tem mais jeito não, vou desistir de dar o peito.

Dona Maria chorou ao ouvir o desabafo de sua filha, parecia ter compreendido a frustração de Camila em não dar de mamar, e disse: “- Eu só não quero que ela passe pelo que eu passei…”

Devolvi: – É que quando nascem os netos, as avós relembram o que viveram, tudinho de novo. Mas nada é tão igualzinho assim. Dona Maria é a mãe da Camila e a avó da Beatriz. E Camila é a Camila, mãe da Beatriz. E, agora o mais importante: a Beatriz é nenê e a Camila é mãe recém-nascida e está na quarentena precisando de apoio, para sentir menos medo. Se bem que sentir medo faz parte de ser mãe, se não como é que você protegeria a Beatriz, Camila? Ela, quando começar a engatinhar, vai querer colocar o dedinho na tomada. Se você não sentir medo por ela, não irá protegê-la. Então medo faz parte. Dirigindo-me à Dona Maria, completei: – A Camila está com medo que a Beatriz morra. A senhora perdeu um bebezinho na sua primeira gravidez. Mas sabe aquela nenezinha que nasceu com sete meses? A sua segunda filha? Ela está aqui na nossa frente, forte e saudável, teve sua primeira filhinha e pode amamentar (enfatizei o pode).

Dona Maria suspirou como se estivesse reconhecendo a Camila não como a filha prematura que lhe assustara, mas como adulta, mãe recente, desejosa de amamentar e frustrada com a perspectiva de não o conseguir.

– Seu leite secou totalmente? – Perguntei à Camila.

– Não, estou só complementando. Mas, tem um ‘nadica’ de nada. Ela mama só umas gotinhas… (voltou a chorar compulsivamente).

– Porque você está chorando agora?

– É que eu queria muito amamentar…

Fiz silêncio. A frase pareceu-me importantíssima; deixei-a ressoar e o choro ir terminando.

Enquanto aguardava, buscava entender aquele choro: por que Camila está chorando agora? Parece que o medo da morte da nenê – o medo que ela sente, não o que sua mãe sente – tornou-se consciente e, com isso, a vontade de amamentar pode transparecer lúcida e cristalina. Chorar estaria “limpando” o desejo de amamentar? Pensava, ‘metaforizando’, que o medo atávico e, neste caso, transgeracional da morte da nenê, havia invadido e soterrado o impulso materno primitivo de amamentar. O choro de Camila como que umedecia esse impulso tentando salvá-lo, mantendo-o vivo. Chorar era a forma de hidratar o impulso primitivo de nutrir, ressequido pelo peso “moral” colocado sobre ele (pensamentos como: eu devo amamentar, isto é ser boa mãe). Chorar era a forma de fazer crescer o desejo de amamentar. A consciência do medo da morte da filha permitiu distinguir e afastar duas regiões vitais sobrepostas: a morte e a nutrição. A descoberta de uma ‘pre-ocupação’ com a morte não soterraria mais a ‘ocupação’ com o aleitamento. Com isso, a vontade de amamentar brotou translúcida. A chamada “força de vontade”, também necessária à manutenção do aleitamento materno, pressupõe a consciência dos conflitos e das histórias familiares. Camila precisava fortalecer ao máximo seu desejo de amamentar, para superar não apenas seu próprio medo da fragilidade ou da morte da Beatriz, mas o medo impróprio, que não era dela, o medo que Dona Maria carregava de perder filhos.

A partir daí, da afirmação consciente de sua vontade (“é que eu queria muito amamentar”), Camila estava pronta, firme em sua autonomia (poder de decisão), para receber orientações sobre a manutenção do aleitamento materno, sobre a possibilidade de reversão da complementação.

Cerca de quinze dias depois, retornei à sua casa. Ao encerrar o atendimento, pedi sua autorização para apresentar sua experiência em um congresso. Ela concordou e disse:

– Conta lá que tudo mudou. Olha só, toda vez que eu dava mamadeira, eu falava repetindo chateada: Mamãe não pode te dar o peito. Agora eu pego a Beatriz no colo e digo: vamos mamar no peito da mamãe, bastantão, um tempão, um montão e só depois ganhar mamadeira.

A positividade da segunda forma e a construção da oração na primeira pessoa do plural, “vamos mamar”, apontaram para o elo feito entre elas!

 

 

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