Arquivos da categoria: Canção de ninar

Ocupação Lydia Hortélio

Pais, mães, irmãs e irmãos, avôs, avós, tios e tias, padrinhos e madrinhas, educadores infantis, profissionais da área de saúde da criança, equipes de creches e Emeis, pré-escolas e berçários… este evento é fundamental para o aprimoramento do nosso olhar sobre a criança! Clicando…

Fraternurando…

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em 1756, século XVIII, em Salzburg, na Áustria e compôs, inspirado em uma canção infantil francesa chamada “Ah! Vous dirai-je, Maman” (“Ah! Vou te contar, mamãe.”), as “Doze variações para piano”. Essa melodia ganhou letras pelo mundo. Letras mesmo: canta-se utilizando o abecedário em diversos idiomas. Mas também ganhou luzes celestiais: virou estrelinha que brilha. E brilha até hoje, século XXI, em muitos lugares do mundo, especialmente dentro das casas onde vêm à luz novas irmãzinhas, como a Jennifer acalentando seu irmão Gustavo, novo brasileirinho, entoando a versão que trouxe no coração, desde pequenina, do Japão onde nasceu…

Virtu…ar com Lunetas…

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado respondeu ao “Lunetas”,  equipe de comunicação do Instituto Alana, que coloca, como eles dizem, “Lentes de aumento sobre o universo das infâncias”. A matéria já está no ar! Ou melhor, no virtu-ar!

https://lunetas.com.br/cancoes-de-ninar/

https://lunetas.com.br/cancoes-de-ninar-brasileiras/

Lunetas: A capacidade auditiva é o primeiro sentido desenvolvido por um indivíduo? E é também o último sentido que perdemos ao morrer? O que isso nos diz sobre a importância dos sons ao longo de toda a vida?

Silvia: Embora o desenvolvimento embrionário não tenha sido tópico de minha pesquisa de doutorado sobre as canções de ninar, que resultou no livro “Canção de ninar brasileira: aproximações”, meus estudos para o acompanhamento de ‘famílias recém-nascidas”, durante os períodos pré e pós-natais e infância inicial de suas crianças incluíram este tema. Sabe-se, até o momento, que o primeiro sentido que se desenvolve é o tato.  A audição do feto, porém, é um sentido importantíssimo na sua comunicação com a mãe e com o mundo exterior. Mais importante é pensarmos que a audição é um forte aliado na adaptação inicial do recém-nascido: batimento cardíaco da mãe, vozes conhecidas, cantigas escutadas no último trimestre de gravidez são sonoridades familiares ao bebê e podem acalmá-lo em situações de desconforto adaptativo.

Lunetas: Quando o bebê ainda está na barriga, as canções de ninar têm impacto sobre o seu desenvolvimento? Como isso acontece, e como se reflete depois?

Silvia: Os ruídos e sons, organizados musicalmente em canções ou não, fazem parte do ambiente do corpo materno e, certamente, influenciam a vida do bebê intra-útero, como todos os demais elementos e estímulos. O corpinho do feto está contido pelo da mãe, que está contido pelo ambiente conjugal e familiar, que está contido pelo ambiente comunitário, que está contido pelo ambiente econômico-social, e assim por diante. São ambientes inter-relacionados que se afetam mutuamente. Em geral, tendemos a observar e buscar compreender como afetamos os bebês, quase como forma de nos desviarmos do impacto transformador que eles exercem sobre nós. A chegada de um bebê renova mesmo o mundo, mas somos muito conservadores para aceitar isso. Guimarães Rosa escreveu, no “Grande Sertão: Veredas”: “ O menino nasceu, o mundo tornou a começar”.

Quanto à canção de ninar, ela é um gênero poético-musical que nasce especialmente na hora de acalmar e levar ao sono as crianças pequenas. Por isso suas denominações: Dorme nenê, Cantiga para adormecer, Nana nenê, Canção de ninar. Vale lembrar que muitas canções de ninar, por suas qualidades estéticas e formais, ultrapassam essa funcionalidade mais imediata e tornam-se composições artísticas (por exemplo: “Acalanto”, de Dorival Caymmi; “Tudo tudo tudo”, de Caetano Veloso e outros). Enquanto objeto de arte, o acalanto ganha um potencial sensível, pois amplia a capacidade e o prazer de conhecer o mundo e a si mesmo.

Além disso, a canção de ninar cuida não apenas do adormecer das crianças, mas dos sentimentos dos cantadores. Por isso, o conteúdo dessas canções revelam, muitas vezes, as inquietações dos adultos, suas necessidades e dificuldades, seus temores, suas lembranças de infância, etc. Cuidando de si mesmos, certamente este adultos estarão cuidando do ambiente em torno do bebê.

Lunetas: É verdade que as canções de ninar têm a mesma estrutura no mundo todo? Pode explicar por que, e como é essa estrutura?

Silvia: Não estudei as canções do mundo todo, mas certamente o efeito hipnótico das canções de ninar resulta de certos recursos musicais como brevidade, repetição, monotonia, lentidão, entre outros. A pesquisa de campo, bibliográfica e fonográfica das canções brasileiras, permitiu identificar uma importante unidade estética dos acalantos: o som totalmente nasal “hum”. Valeria uma continuidade do estudo desta presença em canções de outros povos e culturas.

Lunetas: As canções de ninar brasileiras têm alguma característica preponderante? Se sim, qual?

Silvia: Sim, podemos dizer que as canções de ninar tradicionais brasileiras, anônimas e transmitidas oralmente transportam elementos das principais vertentes (indígenas, africanas e europeias) que formaram a cultura brasileira. Do ponto de vista sonoro, por exemplo, a pregnância da vogal “u” em palavras e elementos originários dessas vertentes, identificáveis no texto das canções. Ou seja, a hipótese é de que o som de “u” seja um elemento integrador das diversas vertentes culturais formadoras do Brasil, que vem sendo transmitidas aos pequeninos nascidos no Brasil. Do ponto de vista do conteúdo, nota-se um grande número de canções que falam do cansaço materno, do acúmulo de tarefas, da pobreza, de medo e terror, do boi, do papão, assim como de temas e figuras protetoras, como anjos, santos, passarinhos, papai, mamãe, coruja. O fato do Brasil ter sido um país que adotou por 400 anos o regime escravocrata, deixou marcas nas suas canções de ninar também.

Lunetas: Diz-se que a voz materna é o som de maior impacto para o bebê. Está correto afirmar isso? Por que isso acontece? E qual a diferença da voz de outros cuidadores, como o pai, a avó, por exemplo?

Silvia: Este tema não faz parte do meu estudo, mas sabe-se que a voz da mãe é rapidamente reconhecida pela criança e que todas as vozes familiares a ela durante a gestação, especialmente no último trimestre, serão reconhecidas após o nascimento.

Lunetas: Sabemos que, no Brasil, ainda se responsabiliza majoritariamente a mãe pelos cuidados com o bebê, contribuindo para uma sobrecarga da mulher e o afastamento afetivo do pai. Como fortalecer o vínculo paterno por meio das canções de ninar?

Silvia: Certa vez, realizei um atendimento domiciliar pós-natal para um casal cujo o bebê estivera internado por 20 dias na UTI neonatal. O pai desta criança, comovido e preocupado com a situação do bebê e da esposa, compôs uma quadrinha que falava da força do menino Pedro, relacionando-a com a permanência de uma pedra e com sua filiação a uma pedrinha preciosa (a mãe). Tanto o pai quanto a mãe começaram a observar que ao cantar este refrão, durante as visitas na UTI, o bebê apresentava melhoras nos sinais de vitalidade e por isso, a adotaram quase como “hino”. Relatou-me o pai que, certa vez, ao sair do hospital, tendo deixado sua mulher sozinha com o bebê, desabou a chorar com criança no carro e só se acalmou ao cantar o “hino do Pedro”. Este relato é bastante significativo do efeito curativo do canto para pais e filhos!

Vale pontuar também que os acalantos compostos por artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso, Dorival Caymmi tiveram suas origens na experiência inicial de paternidade deles.

Lunetas: Você poderia sugerir 10 músicas para montarmos uma playlist bem bacana de canções de ninar brasileiras?

Silvia:

Acalanto de Planta – LP: Bloco da Palhoça/ Beatriz Bedran

O Besouro – CD: Abra a Roda Tin Dô Lê Lê/ Lydia Hortélio

Sapo Cururu – CD: Oh! Bela Alice / Lydia Hortélio

Murucututu – CD: Murucututu/ Eugênio Tadeu e Miguel Queiroz

Nananenem – CD: Paisagens/ Ivan Vilela

Era uma vez – CD: Canções de Ninar/ Palavra cantada

Essa Menina – CD: Brincadeira de Viola/ paulo Freire

Acalanto – Dorival Caymmi

Acalanto para Helena – Chico Buarque

Tudo tudo tudo – Caetano Veloso

No link abaixo estão as gravações de pesquisa de campo e fonográfica

http://www.primeiromovimento.com/cd-do-livro-cancao-de-ninar-brasileira-aproximacoes

 

 

 

 

 

Canção de ninar ajuda a salvar famílias de tsunami

A canção de ninar é uma forma poético-musical que nos chega por transmissão oral. Isso significa psiquicamente um acento na oralidade, no que implica a voz e a boca humanas e no que implica uma pulsão de vida (auto conservação) e um instinto protetor da espécie.
Em dezembro de 2014, Marcelo Ninio redigiu uma matéria, para a Folha de São Paulo, intitulada: “Canção de Ninar – Música infantil que alerta para o risco de tsunami ajudou a salvar habitantes de ilha indonésia da tragédia de 2004”.
É que, em 1907, Simeulue, uma das 19 mil ilhas do arquipélago da Indonésia, já havia sido atingida por um tsunami. A narrativa dos acontecimentos trágicos, bem como os alertas para o perigo iminente passaram a ser cantados por pais para adormecerem seus filhos.
A canção de ninar fala de uma onda gigante (“smong”, no idioma local) e ensina que quando o mar recua é preciso fugir para as montanhas porque haverá brevemente uma inundação. Esta canção foi transmitida de geração em geração e, ao primeiro sinal da onda gigante em 2004, a palavra cantada “smong”, ressoou na memória coletiva. De uma população de 80 mil habitantes, apenas 7 pessoas desta ilha morreram (lembramos que a tragédia de 2004 ceifou a vida de 230 mil pessoas, 70% delas da Indonésia).
Vidas humanas foram salvas por um saber cantado às crianças. Ou seja, a canção de ninar, em seu aspecto funcional, é uma ação profilática, especialmente por seu alcance coletivo. Neste caso, o provérbio, também elemento de tradição oral, foi confirmado: “Quem canta seus males espanta”.

“Anaguú”: o som para adormecer

“Anaguú”

Maria Fernanda cantou, para seu irmão recém-nascido dormir, uma canção de ninar da tradição oral brasileira. A menina estava tão centrada e tranquila que chegou a improvisar um trechinho melódico cantado em “anaguú…anaguú…”. (Ver o vídeo postado neste blog em 12/10/2015)

Selecionei um trecho do livro, A canção de ninar brasileira: aproximações, a ser publicado pela Editora da Universidade de São Paulo, sobre a importância do som da vogal interiorizada “u” e dos sons nasais, que são unidades estéticas universais dos acalantos. Estes sons ocorreram no canto de Maria Fernanda ao entoar espontaneamente: “anaguú”.

“Nas canções de ninar, a presença dos nasais é marcante; mais do que isso, ela é intencional, porque a canção tende a acabar cantada pelo nariz, como que para não despertar a atenção do pequeno ouvinte para as articulações e dicções das consoantes e das vogais. Um som emitido pelas narinas para subtrair o ”ataque” inicial do som, uma forma de arredondá-lo. Assim, versos que se diluem em esparsas palavras que, por sua vez, desfazem-se em sons nasais (cantados e ritmados pelo nariz) é recurso comum à entoação da canção de ninar.

O hum é palavra monossilábica que pode ser pronunciada tanto pela boca quanto emitida pelo nariz. Um som curto que pode ser alongado ou reduzido, percorrer a extensão da voz de seu emissor em glissandos, ascendentes ou descendentes, ou sustentar-se sobre uma mesma altura; um som bem aberto às interpretações de seu entoador, portanto. Uma interjeição capaz de exprimir emoção, sensação, aviso, apelo, capaz enfim de transmitir diferentes mensagens dependendo das expressões faciais, corporais e das variações entoativas que a acompanhem. Unidade linguística compacta à qual se podem atribuir diferentes sentidos e que guarda a possibilidade de substituir frases e enunciados. Escreve Alfredo Bosi: “A onomatopéia e a interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais da representação e da expressão”[1]. O hum, interjeição, pode ser considerado, então, uma dessas formas primordiais e estaria relacionado, possivelmente, à origem das línguas.

Além disso, o hum é prontamente identificável no início da fala humana: um som emitido pela criança pequena nos prenúncios do sono, como um dos últimos gestos vocais antes do adormecer, espécie de murmúrio final, ou, ao despertar, uma das primeiras vocalizações que acompanha o espreguiçar-se. Som das passagens da vigília ao sono (período no qual ocorre a canção de ninar) e, vice-versa, do sono à vigília (muitos pais cantam também para acordar as crianças). O hum é uma emissão sonora que se prolongará, na vida adulta, às mais diversas situações: expressão de queixa, de espanto, de dor contida, de prazer, de desconfiança, de curiosidade, de indagação, de perplexidade, de hesitação, de afirmação, de negação e, além de todos os outros, som para cuidar do sono das crianças: elemento composicional dos acalantos. O hum parece fazer de tudo um pouco e, para ganhar sentido, necessita da participação do corpo, da voz, do gesto ou do contexto.

No extremo oposto desta gama de significações, o hum inverte-se e pode não significar nada. Justamente aí parece residir sua potencialidade hipnótica: perdendo seus coadjuvantes de significado (a expressão corporal, gestual, o contexto e variações entoativas) o hum nasal torna-se mono-tom e, como uma borracha, apaga, progressivamente, falas, notas melódicas e ruídos; desliga, enfim, a pessoa do ambiente sonoro que a cerca, conduzindo-a ao sono. Nesse caso, o hum perde e faz perder os sentidos; um som gerador de monotonia, propiciador do recolhimento, da internalização e do fechamento – para quem ouve e para quem canta. Se há algo de universal nessa unidade sonora, talvez isso se deva mais à sua potencialidade hipnótica do que à sua vasta abertura para significados. O hum nasal ocupa o lugar da não-palavra e, com isso, parece levar o ouvinte ao fundo amorfo e primeiro da linguagem humana; um elemento que pertenceria ao substrato sonoro das línguas[2].”

 

Em: “O hum nasal: de onde ‘Tudo tudo tudo’ vem”. Texto extraído da tese: Canção de ninar brasileira: aproximações. Link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-28082012-124302/pt-br.php

[1] BOSI, Alfredo. “O som no signo”. In: O ser e o tempo da poesia. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 50.

[2] O som prolongado do hum assemelha-se às entoações do principal mantra hindu, o aum. No capítulo “Antropologia do ruído”, em O som e o sentido – uma outra história das músicas, José Miguel Wisnik, acompanhando o percurso de Marius Schneider estudioso que encontrou em cosmogonias de diferentes tradições um fundamento musical escreve: “Na origem do universo, o deus se apresenta, se cria ou cria outro deus ou cria o mundo, a partir do som.[…] O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta ou da oralidade em todas as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito).” E, para exemplificar, Wisnik apresenta a significância do som oum para os hindus: “No hinduísmo, que é, como já disse, uma religião intrinsecamente musical, toda constituída em torno do poder da voz e da relevância da respiração (onde o próprio nome do deus, Brama, significa originariamente força mágica, palavra sagrada, hino, e onde todas as ocorrências míticas e eventos divinos são declaradamente recitações cantadas com caráter sacrificial, mantra), atribui-se a proferição da sílaba sagrada OUM (ou AUM), o poder de ressoar a gênese do mundo. O sopro sagrado de Atman (que consiste no próprio deus) ‘é simbolizado por um pássaro cuja cauda corresponde ao som da consoante m, enquanto a vogal a constitui a asa direita e o u a asa esquerda’”. Seja o aum (om, oum), proferido pelos hindus, seja o hum, proferido por aqueles que cuidam do sono de crianças pequenas, essa sonoridade parece conter mesmo algo de universal. (WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras e Círculo do Livro, 1989. p. 34.)

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado