Arquivos mensais: janeiro 2016

A CASA E O COLO

Abraço de Vó

Em 28 de dezembro de 2015, os meios de comunicação noticiaram a sobrevivência de Maria Luíza, uma garotinha de um ano e oito meses, protegida pela avó durante forte temporal. Uma das manchetes sobre o assunto anunciava: ” Criança é salva de deslizamento por abraço de avó”. Marisa (47 anos), a avó, era mãe de Yasmim (19 anos), por sua vez, mãe da pequenina. Ambas morreram soterradas. Maria Luíza, órfã duplamente: de mãe e de mãe da mãe. Toda a família (marido, três filhos e quatro netos) sofreu desta orfandade: “Dona Marisa? Não tenho nem palavras. Ela ajudava, dava conselhos. Nunca deixou de fazer nada pelos filhos, pelos netos. Tanto é que morreu pela neta” – disse sua nora para uma repórter.

Itapecerica da Serra – cujo nome tupi significa pedra nua coberta por lençol de água corrente, incrustada em encostas e morros – foi a cidade da vez da tragédia. A pedra úmida de lágrimas da terra brilha hoje naquela serra. Itapecerica é apenas mais uma entre tantas cidades brasileiras cujo sofrimento expõe a falta de proteção efetiva e o descaso político com a necessidade humana básica de morar em paz, poder se recolher e se abrigar das intempéries, sentir-se confortável e tranquilo para dormir… tal como a Maria Luíza certamente se sentiu no colo de Yasmim ou de Marisa, antes de 28 de dezembro.

Faísca

Certa feita, no verão de 2012, atendi Natalie e seu filho Mateus, com vinte dias de vida, na sua residência situada em uma viela estreita, cujo único acesso se faz por uma via marginal da Rodovia Castelo Branco, na região de Osasco/Carapicuíba (SP). Viela onde passa apenas um carro, mas que, mesmo assim, possui mão dupla. Trânsito confuso, portanto.

Subi vários lances de escada com degraus de cimento bruto, irregulares em altura, largura e profundidade, e cheguei ao cômodo que abrigava mãe e nenê. Era o último patamar de uma espécie de edifício construído sobre a fundação de uma “casa-mãe”, ou melhor, “casa-avó”.

– Deve ter sido puxado subir esta escadaria durante sua gravidez, principalmente no final, não? – Perguntei à Natalie.

– O pior foi quando voltei do hospital, por causa da cesárea. Daí não deu mesmo, precisei ficar lá embaixo, na casa da avó do meu marido – aquela senhora que abriu o portão para você. Subi antes de ontem aqui para o nosso cantinho, né bebê da mamãe?

E continuou bem-humorada:

– Na gravidez? Subia todo dia contando os 42 degraus, cada vez mais lentamente, respirando e torcendo para não ter esquecido nada lá embaixo. Já sei de cor, mas não salteado, como é cada degrau!

Moravam em um quarto/sala/cozinha e banheiro pequeno e cuidado com muito capricho: paredes pintadas, cozinha e banheiro azulejados, ambientes mobiliados e aconchegados por almofadinhas e toalhinhas de crochê – artes das mulheres habitantes do edifício familiar improvisado a cada novo casamento ou nascimento. O cantinho do nenê era delimitado, no quarto, por um papel de parede com motivos infantis: pipas e pássaros em um fundo de céu azul com sol e algumas nuvens.

Lá fora, porém, o céu era outro. O calor era tremendo, desses abafamentos típicos que precedem tempestades de verão. E vinha! Pela única janela eu podia avistar o céu cinzento e denso, riscado de raios. Ouvia-se trovoadas secas. Armava-se o temporal.

Natalie estava indecisa quanto a manter a janela aberta:

– O que acha? – Perguntou gesticulando para que eu me aproximasse da janela junto com ela.

Levantei-me e fui. Foi impressionante o que vi: um emaranhado de fios elétricos de alta tensão e cabos telefônicos pendurados caoticamente ao poste, que ficava em frente à janela. O nó era tamanho que mal se via a calçada estreita lá embaixo.

– Estou com medo destes raios e relâmpagos caírem nos fios. Será que não faísca? Se eu fechar a janela, vai ficar mais abafado, não adianta nada. Você se incomoda de a gente ir para a casa da avó do meu marido?

E foram descidos os 42 degraus. Natalie estava com o Mateus no colo e eu carregava a sacola do nenê, mesmo que ela insistisse delicadamente que poderia carregá-la sozinha. Para convencê-la definitivamente, eu disse em tom leve, quase brincando, que psicólogo também sente medo.

É que descer aquela escada de difíceis degraus e escura, àquela hora, acompanhando uma mulher em recuperação cirúrgica e puerperal, com seu nenê recém-nascido no colo, ao som de sinistros trovões e receosa com as descargas elétricas e possíveis faíscas era uma situação de risco que nos atingia.

O medo é uma emoção que se encontra aumentada nos adultos que zelam pelo recém-nascido, especialmente a mãe, no período pós-parto. Mesmo que desconfortável, o medo é fundamental porque, para proteger o nenê, é necessário que se reconheça sua condição de ser mortal e isso assusta. Esse núcleo do medo da morte do filho é tratado com atenção nos atendimentos psicológicos que realizamos no período pós-natal, por sua importância psicoprofilática. Porém, tratá-lo bem exige o reconhecimento urgente de questões objetivas e não apenas psicológicas que o influenciam. Problemas econômicos e sociais crônicos, políticas públicas ineficientes, qualidade precária de moradia são exemplos de dificuldades que atingem a casa da mãe – ou da avó- brasileira em sua função ninho de ser. A possibilidade negligenciada de inundação, deslizamento, soterramento, incêndio nas moradias afetam sobremaneira a casa-ninho do nenê: o colo.