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Fraternurando…

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em 1756, século XVIII, em Salzburg, na Áustria e compôs, inspirado em uma canção infantil francesa chamada “Ah! Vous dirai-je, Maman” (“Ah! Vou te contar, mamãe.”), as “Doze variações para piano”. Essa melodia ganhou letras pelo mundo. Letras mesmo: canta-se utilizando o abecedário em diversos idiomas. Mas também ganhou luzes celestiais: virou estrelinha que brilha. E brilha até hoje, século XXI, em muitos lugares do mundo, especialmente dentro das casas onde vêm à luz novas irmãzinhas, como a Jennifer acalentando seu irmão Gustavo, novo brasileirinho, entoando a versão que trouxe no coração, desde pequenina, do Japão onde nasceu…

Tornar-se irmã – Tornar-se irmão

Em maio deste ano, participei de uma roda de conversa com educadores infantis e, depois, com os pais da Escola Grão de Chão, cujo tema foi “Nascendo como irmão/ã”. Foram muito enriquecedoras a troca de experiências e a constatação de que o ambiente escolar pode favorecer a construção de vínculos “fraternos”, principalmente quando a escola, como a Grão de Chão, trabalha, reunindo crianças de diferentes idades, ou seja, sem separá-las por faixas etárias, facilitando a criação de elos entre maiores e menores, velhos e novos, fortes e frágeis. A Escola Grão de Chão foi fundada em 1984 e, com seus 33 anos, conserva-se aberta e acolhedora do novo. Ao sair do Fórum de Conversa com Pais, em que encontrei casais especialmente interessados no estabelecimento de vínculos amorosos e equilibrados entres seus filhos, pensei que urge amadurecermos a ideia de uma licença fraternidade, criando a oportunidade da criança que acabou de receber um(a) irmão(a) poder ficar em casa, sem prejuízo escolar. Trata-se de uma ação tão importante quanto a ampliação das licenças maternidade e paternidade, já que tornar-se irmão é um processo de transformação profundo e fundamental para a construção de um mundo fraternal. Buscando dar voz às crianças que ainda não falam (os infantes), a Primeiro Movimento – Equipe de Psicologia para o Pré e Pós-Natal e para a Primeira Infância reconhece a importância e estuda esta ação.

A íntegra da palestra realizada:

I.Nascendo como irmã ou como irmão

Por que este título? Porque, em geral, se diz que uma criança ganhou um irmão e esta perspectiva é parcial, pois, nela, irmão refere-se àquele que chega e não àquele que estava ali, compondo um determinado grupo familiar e que, agora, com a chegada de uma nova criança, está convocado, pela vida, a se transformar em irmã/o, tal como ocorreu com seus pais quando, ao ganhar o primeiro filho: tornaram-se pai e mãe. Nosso foco aqui será o processo de tornar-se irmã/o e não o de ganhar irmão.

Começo estas reflexões expressando um desejo e aproveito, para isso, uma bonita frase do Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas. Escreve ele: “O menino nasceu, o mundo tornou a começar. ” O mundo nasce de novo. Escolho essa sentença-guia, como desejo de que, em nossas atividades como educadores, possamos ir reconhecendo e respeitando os traços profundamente renovadores transportados pelas crianças pequenas. Elas renovam o mundo, se nos permitirmos, nós, os que já habitamos nele, a acolher o novo.

Certa vez, conversando com Lydia Hortélio, essa grande educadora e pesquisadora da cultura da infância brasileira, ouvi algo mais ou menos assim: “ Tenho certeza que um dia veremos acontecer uma revolução iniciada pelas crianças; para isso precisamos apenas deixar suas expressões livres e as ajudar a canalizá-las. ” Nesse caminho da “revolução infantil”, arrisco-me a dizer que a observação cuidadosa e acolhedora dos movimentos e dinamismos familiares, que ocorrem neste tempo de nascimento como irmã/o, poderiam nos fornecer pistas autênticas e orgânicas para a construção de um mundo fraternal. Isto me lembra os versos do Caetano Veloso, em Flor do Láscio Sambódromo; dizem assim: “Eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria.” Frátria seria uma construção social baseada em igualdade, simetria, mesmo plano, ombro-a-ombro, solidariedade. Talvez a fraternidade seja a relação humana mais paradigmática da justiça e do equilíbrio de forças. Não à toa São Francisco de Assis, o santo que inspira o ativismo ecológico e não antropocêntrico, escolheu os pronomes irmão e irmã como tratamento para astros, seres vivos e até mesmo para a irmã morte.

II. Frátria

Para termos uma ideia dos óculos que usamos para ler o fenômeno de tornar-se irmã/o e o quanto nossa visão não favorece a frátria, formei uma frase com expressões frequentes de se ouvir neste contexto da chegada de uma nova criança: “Ele/a está querendo chamar a atenção, está com ciúme. É que, desde que ganhou um irmãozinho, perdeu o trono”. “Querer chamar a atenção” e “estar com ciúmes” tornaram-se clichês psicológicos dos quais trataremos adiante. Começo esta reflexão por “Ganhar irmã/o” e “perder o trono”. Ganhar e perder são ações que nos remetem a experiências de competitividade, alinhadas com um modo de convivência onde o indivíduo se sobrepõe ao coletivo, onde tronos são disputados, territórios são invadidos, conquistados ou perdidos, onde tende-se a ver fortes-vencedores diferenciados de fracos-vencidos. Ou seja, claramente uma perspectiva de poder.

Não é de se estranhar que, na base da cultura ocidental judaico-cristã, encontremos, logo no Gênesis, a estória de dois irmãos, Caim e Abel, em que ocorre um fratricídio. Trata-se de uma narrativa mítica em que Caim, movido pelo ciúme, porque Iahweh se agradou mais das oferendas “pecuaristas” de Abel do que de seus produtos agrícolas, matou seu irmão e, como punição divina, passou a precisar de lutar pela fertilidade do solo; com isto, ocorreu a inauguração de uma descendência violenta. A Bíblia cita um cântico selvagem que, segundo profundos conhecedores do texto em aramaico, exegetas e tradutores, testemunha essa crescente violência. Trata-se de um canto em homenagem ao tatataraneto de Caim (talvez cinco ou seis gerações após Caim), chamado Lamec, que se tornou um grande herói do deserto. É ele mesmo quem canta para suas mulheres:

“Ada e Sela

Ouvi minha voz,

Mulheres de Lamec,

Escutai minha palavra:

Eu matei um homem por ferida,

uma criança por contusão.

É que Caim é vingado sete vezes

Mas Lamec, setenta e sete vezes. ” (Gênesis 4, 23-24)[1]

Assim, remonta a aproximadamente 5000 anos o despontar de uma civilização bélica, inaugurada por um fratricídio e, embora tenhamos na mesma história ocidental figuras sagradas e significativas de vida fraternal, nosso olhar está contaminado por essa estrutura violenta do poder. Então é preciso nos perguntarmos: será que a experiência de chegada de uma nova criança, a experiência de nascer como irmão é mesmo carregada desta competitividade que se traduz, por exemplo, no uso das expressões “ganhar irmão” e “perder o trono”? Ou estaria o nosso olhar adulto-ocidental viciado nos modos e funcionamentos do poder e, desta maneira, impregnando a experiência de tornar-se irmão com disputas, invasões, figuras perdedoras e ganhadora de territórios? Não estaríamos assim perpetuando os dinamismos de uma sociedade competitiva? Além disso, existiria algum caminho alternativo? Como poderíamos renovar nosso olhar em relação ao nascimento de e como irmão?

Alguns relatos da minha experiência acompanhando famílias no período pós-natal poderão nos dar pistas para estas questões, mas, primeiramente, apresento um trecho do livro Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo, da filósofa Marilena Chauí, que foi uma espécie de achado no meu percurso profissional, justamente por expressar, com clareza, a relação de troca amorosa complexa e profunda que percebia ocorrer nas relações iniciais das mães, pais e outros familiares com os bebês, mas que nunca conseguia formular em palavras. Penso que este trecho abre uma perspectiva potencialmente capaz de reorientar nosso olhar contaminado pelo prisma da competividade e do individualismo, propondo uma compreensão da dinâmica do amor. Escreve ela:

“ O menino que pede à mãe para consolá-lo da dor que ela sente não rivaliza com ela, não lhe pede um reconhecimento que a destituiria de seu ser […]Pede-lhe que não fique ensimesmada na dor, que a converta em relação com outrem, em gesto de amor. A mãe compreende instantaneamente o pedido e se se devota à criança não é porque cede a uma força aniquilante, mas porque ‘sabe’ que saindo de si volta a si, que a devoção dada a outro é também a maneira de se amar. Não há indistinção; há troca e reversibilidade de lugares diferenciados e comuns. ‘Egocêntricos’, somos excêntricos (no sentido duplo dessa palavra). […]”[2]

Assim, existe eu, existe outro, são distintos, “não há indistinção”. São distintos, mas em movimento de “troca e reversibilidade”, comunicação. Ao pedir consolo, o menino desperta a dor da sua mãe. Ela, doída, pode se sentir ferida pelo filho e fechar-se em si, ensimesmar-se ou pode revoltar-se, mas pode também converter a dor que sente em “gesto de amor”, relação de correspondência com o outro, movimento, transição de si ao outro, do outro a si. E, se encontrou esse caminho, a mãe descobrirá que, como diz Chauí, “a devoção dada a outro é também a maneira de se amar”. Não amamos o outro, simplesmente amamos e, por isso, tornamo-nos mais amorosos. Como árvore que a cada galho que se abre, a cada fruto que se produz, torna-se cada vez mais frondosa, capaz de acolher em um mesmo instante, muito mais que uma, duas, três pessoas, filhos ou não, em sua sombra; e acolher diversas espécies de seres vivos em seu tronco e galhos. Nesse sentido, podemos considerar o tempo do nascimento de uma criança, com toda sua complexidade, força e dinamismo, como uma reserva ecológica do amor humano, onde é possível encontrar este núcleo amoroso, com todas suas delícias e dores e pavores. Diferentemente da lógica matemática que diz que quanto mais dou, fico com menos, aqui se estabelece a lógica do amor, que pode superar o individualismo e a competitividade: quanto mais dou, com mais eu fico ou, melhor colocado, quanto mais amor se dá entre nós, mais amorosa fico, ficas, fica, ficamos, ficam todos.

Em resumo, até aqui abordamos o eixo do poder que atravessa milenarmente nossas relações configurando uma sociedade competitiva e, encontramos uma possível abertura de superação disto, na possibilidade amorosa que se evidencia com vigor na relação mãe-filho e, na realidade, em todas as relações intrafamiliares pós-natais, dinamismo que a filósofa formulou tão claramente no trecho lido.

III. Ciúme

Feito isto podemos, então, retomar o sentimento de ciúme, que aparece, quase sempre, como um “clichê psicológico”, acabando por encobrir oportunidades de compreensão de facetas profundas e, a meu ver, maravilhosas deste movimento de tornar-se irmão. É como se ao dizer “esta criança está com ciúmes” obstruíssemos o canal emocional que permitiria não apenas uma comunicação fluente – “trocas e reversibilidades”, como diz Chauí – mas, a ultrapassagem de situações aparentemente sem volta e sem retorno, em um contexto em que, de fato, algo definitivo ocorreu: o nascimento de um irmão. Tanto a chegada ou nascimento de uma criança, quanto a partida ou morte de alguém mergulha a família nesta relação com o que é definitivo. Assim, o nascimento como irmão implica em experimentar o limite do que é definitivo e não tem saída. Mas brinco que há uma doença própria do período pós-natal, chamada “definitivite aguda” que pode contaminar a todos. E aqui começam os enganos familiares e autoenganos, porque nem tudo que está acontecendo será para sempre. Sendo assim, é preciso discernir, e, portanto, escutar atentamente a criança, que está se tornando irmã, antes de revesti-la com qualquer clichê ou explicação fácil.

Voltando ao ciúme. Ele é mesmo um sentimento relacionado com a consciência do fim, do sem saída, do limite absoluto. Quantas vezes as crianças pequenas recém-nascidas como irmãs, não sugerem que o bebê seja retirado da família ou de casa justamente na perspectiva de encontrar uma saída para uma situação que é definitiva? Ou seja, supõe, essa criança, que “se eu tirar o bebê de casa eu acabo com o meu problema”. E, qual é o problema dela? O problema dela não é o seu irmão existir, o problema é deixar-se transformar, ser diferente do que era, tornar-se irmã. Aliás, este é um ponto doloridíssimo nas depressões puerperais ou nas psicossomatizações das ansiedades paternas: o nascimento de um filho é definitivo, não tem volta e a única saída é deixar-se renovar, transformar-se em pai e mãe. Por isso, a maternidade e a paternidade são experiências fortíssimas de aprendizado de flexibilidade.

O ciúme é um sentimento que surge exatamente quando não nos deixamos renovar, ou não nos é possível renovar. É porque eu não quero, não consigo ou não posso me transformar; é por me sentir paralisada diante de uma situação que pede mudança, que eu busco aniquilar o outro que me obriga a esta transformação impossível para mim. Trata-se de um tremendo autoengano! Nesse sentido, ciúme é um indicador de rigidez, sendo, por isso, muito mais provável em adultos do que em crianças; ou, pelo menos, se ocorre na criança, tem muito mais chance de ser ultrapassado.

Talvez todos aqui conheçam estórias, gostosas e divertidas, de crianças que sugerem a devolução do bebê para a maternidade ou sua doação para alguém:

-Mamãe, você estava esperando o nenê nascer. Pronto, já nasceu, agora pode dar ele para alguém.

Ou sugestões mais antropofágicas:

– Mamãe, esse bebê chora muito! Não era melhor ele voltar para sua barriga?

– Não dá para voltar para a barriga, filhinha.

– Dá sim. É só ele virar comida, daí você come ele!

Pode ser que assim tenham nascido as lendas de bruxas e papões! Nós, adultos, ficamos tão assombrados com esses seres fantásticos que comem criancinhas, que ficamos chocados com a ideia desta menina e, rápido, apelamos para o clichê: “Está enciumada, quer destruir a irmãzinha”. Mas, a pior consequência da nossa fuga dos seres fantásticos e do nosso engano de interpretação é esquecermos da queixa real da menina. Simples: “Mamãe, esse bebê chora muito! ” Para uma menina que nasceu em uma casa na qual havia apenas adultos, uma casa até então silenciosa, onde talvez o único choro mais ruidoso fosse o dela, para esta menina, ouvir o choro de um recém-nascido pode ser muito desconfortável, tal como um dia o foi, o seu próprio choro, para seus pais. Neste caso, tornar-se irmão implica em seguidos exercícios adaptativos para se familiarizar com a presença de um bebê recém-nascido, com suas manifestações mais primitivas tais como resmungos, choros, cocôs, xixis, regurgitos, engasgos, soluços, espirros; com suas demandas imprevisíveis de colo e amamentação; e, com seus ciclos estranhos de sono e vigília. Facilitar a adaptação desta criança recém-nascida como irmã a esse plano concreto da experiência de conviver com um bebê é fundamental, para que ela se organize melhor nesse momento, em geral bastante caótico e, por natureza, desequilibrado, do período pós-natal na família.

Inúmeras vezes presenciei pais e mães entristecidos por interpretarem o gesto do primeiro filho, de tampar suas orelhas para não ouvir o choro do bebê, como rejeição ao irmãozinho recém-nascido. Esse é um exemplo de como caímos fácil no clichê do ciúme. O primeiro filho não está rejeitando o irmão, não o está negando, não há ciúme aí, o que há é bom gosto: ele não quer ouvir o choro ruidoso de um bebezinho. Talvez o que mais o ajudaria nesse momento fosse, primeiro, um reconhecimento do desconforto real causado pelo choro; segundo, uma explicação simples e adequada à sua compreensão de que bebês pequeninos choram em vez de falar ou fazer gestos; e, por último, dar dicas e sugestões de como ele pode se proteger para aliviar o desconforto: se afastar, tampar mesmo as orelhas e, dizia-me uma mãe: “Rezar para a mamãe conseguir acalmar rapidamente o bebê.”

IV.Pais de família

Ocorre que também os pais e mães estão se transformando: no nascimento do primeiro filho, tornaram-se pai e mãe e, no do segundo, pai e mãe de família. E família é grupo. Mas, ainda ligados ao aprendizado anterior, os pais e mães tendem a querer repetir o que fizeram para o primeiro com o segundo; levam certo tempo para perceber que são pais de um grupinho e tendem a cuidar das situações por operação de separação e individualização: ou cuido deste ou cuido daquele; um dorme em um quarto, o outro em outro; um fica com a mãe, o outro fica com o pai (o problema é quando nasce o terceiro!); brinco com este enquanto aquele dorme; dou atenção para este quando o outro está na escola. O fato é que com isto cria-se, mesmo sem a intenção, a acentuação da exclusão, ou um ou outro, quando o desafio é fazer a conexão um e outro, cuidar dos dois ao mesmo tempo…

É justamente a criação de soluções reunidoras, que pode dar referências para o filho maior de como acolher o menor, além de facilitar a integração dos filhos, favorecendo assim a configuração do grupo familiar e seus sub-grupos, o dos adultos e o das crianças da casa. É notável o surgimento de expressões, a partir de um ou dois meses depois do nascimento do segundo filho, tais como: “quando as crianças dormirem”, “é hora do banho das crianças”, “o quarto das crianças”, “agora é hora do papai e da mamãe”, etc. Tornar-se pai e mãe de família é descobrir como zelar pelo bem-estar de um grupo e não de dois indivíduos crianças.

V. Tornar-se irmão: primeira “crise existencial”

E tornar-se irmão? Talvez, nascer como irmão, durante a infância inicial, seja uma das primeiras “crises existenciais”, no sentido de experimentar com algum grau de consciência, uma forte transformação da própria vida. Por isso, também é uma das primeiras oportunidades de descoberta e conhecimento dos limites da existência: nascer e morrer, essas extremidades fortes da vida. Nascer como irmão lança a criança na descoberta do ciclo vital: nascer, crescer, poder ser pai e mãe, envelhecer, morrer. Transformação, movimento contínuo: muda o espaço, muda o tempo e muda a vida.

Vamos ver algumas manifestações dessa “crise existencial primeira”, digamos assim, ou primeira tomada de consciência, mesmo que rudimentar, do movimento de transformação inexorável da própria vida. Escolhi alguns trechos breves de relatos da minha experiência com crianças que acompanhei logo no início do processo de se tornarem irmãos, seja nos atendimentos domiciliares pós-natais, seja em orientações de pais no consultório. Para efeito de organização desta exposição, agrupei-os em três campos da experiência: espacial, temporal e vital.

Mudança no campo espacial : 

Este campo refere-se à descoberta do tamanho do próprio corpo, estabelecida na referência do tamanho do corpo do bebê. Trata-se da percepção “repentina” do crescimento. Aparece o maior e o menor.

Esta observação se deu primeiramente nas minhas conversas com as mães. É frequente ouvir que se surpreenderam com o tamanho do(a) filho(a) maior, logo após o nascimento do bebê: “Na primeira vez que o Léo (primeiro filho, 2 anos) foi à maternidade nos visitar, depois que a bebê nasceu, achei que ele tinha crescido muito! De ontem para hoje, era um menino, não era mais bebê”! O nascimento do segundo filho redimensiona o tamanho do primeiro aos olhos dos pais e, com isto, surgem sentimentos e preocupações novas como, por exemplo, o medo de pedir a mais do que o primeiro filho poderia, de fato, dar. Ou ainda, a culpa por não aguentar suas atitudes de “nenezinho”.

Junto com isso, a própria criança está se reconhecendo em seu tamanho e oscila entre ficar pequenina como um bebê (o que costuma-se chamar de atitudes regressivas) ou ficar maior até do que o próprio pai (que podemos nomear, então, de atitudes progressivas)! Há muitas expressões disso, uma delas é o medo que o primeiro filho sente, por ser grande, de machucar o irmão pequeno. Ser grandão (forte) assusta, pois, o “gigante” é potencialmente aniquilador, de alguma maneira percebe que pode machucar o menor (frágil). Ouvi muitos sonhos de crianças de 4 ou 5 anos, que manifestam este tema.

Uma brincadeira “terapêutica” que faço nos atendimentos domiciliares pós-natais é comparar o tamanho das mãos de todas as pessoas da família. Observo a alegria que os maiores sentem não apenas ao ver que cresceram, comparando-se com o bebê, mas ao constatarem que seus pais possuem mãos maiores ainda. Descobrem que estão no “meio” de um grupo; isto gera uma sensação de acolhimento, de cabimento.

Essa oscilação pode ser mais perturbadora para o adulto do que para a criança. Vejam este relato bem-humorado de um avô:

Hora do sono. No quarto do filho (4 anos):

-Mamãe, o nenê vai dormir no seu quarto?

-Sim, ele é pequenininho.

-Posso dormir lá também? Todo mundo junto?

– Quando você era pequenino você também dormiu uns dias no meu quarto. Agora, você já é grande, já pode dormir sozinho.

-Você também já é grande, mamãe. Por que você dorme com o papai?

Mudança no campo temporal:

Este campo diz respeito ao envelhecimento, refere-se a descoberta de ser mais velho do que o bebê, novo, que chegou. A passagem de ter sido o mais novo da casa para ser, agora, mais velho gera uma questão angustiante: o que é que vai acontecer com aquele que é velho? Será descartado? Esquecido? Desaparecerá? Morrerá?

Esta observação nasceu, primeiramente, de uma conversa com uma avó materna, após o nascimento de seu primeiro neto, em um atendimento domiciliar. Perguntada sobre como se sentia como avó, me respondeu: “Parece assim, que o trenzinho andou e que a chegada de um vagão empurra o outro mais para frente…a gente fica mais velha. ”

Vamos ver o trecho de um atendimento domiciliar que ilustra bem isso. Um menino (2 anos e 9 meses) que sempre dormira bem, desde o nascimento de seu irmão, há 15 dias, vinha acordando assustado, no sono da noite e no sono da tarde. Um dia estava com sua mãe olhando pela janela e observou:

-Mãe, o que é aquilo nas costas daquela mulher?

-Ah! Ela é corcunda. Às vezes, as velhinhas têm isso nas costas.

-Ela é velhinha?

-Sim, velhinha.

-Precisa jogar fora?

Esta foi a pista para ajudá-lo em sua angústia. Para este garoto, tornar-se o mais velho, expressão que vinha sendo utilizada pelos familiares, poderia significar ser jogado fora. A mãe se lembrou que no período pós-parto do nascimento deste seu primeiro filho, ela mesma se sentia muito preocupada em voltar a ser como era, ter o corpo que tinha, para não ser rejeitada pelo marido (ou, na expressão do garoto, “jogada fora”). Esta lembrança e escuta empáticas fizeram com que a mãe pudesse acolher mais integralmente seu filho “mais velho”. Para este menino, a garantia de que ele estava bem, que não era “velhinho”, de que estava forte, de que podia dormir sem medo (…de morrer), melhorou seu sono.

Algo semelhante aconteceu em outro atendimento, que intitulo  Metamoforse. Trouxe aqui o desenho de uma garota de 5 anos. Ela o fez enquanto eu conversava com sua mãe e me entregou espontaneamente, na nossa despedida, no encerramento do atendimento. Um breve relato deste atendimento ajuda a compreender o desenho. Quem me atendeu à porta do apartamento foi Gabriela, transcrevo nosso diálogo:

– A minha mãe está acabando de trocar a nenê e já vem. Pediu para a gente esperar um pouco aqui na sala.

– Você é a Gabriela, não é?

-Sou.

– Quando você nasceu, eu vim aqui também. Você era bem pequenininha. Quantos anos você tem agora?

– Cinco. Sabia que minha mãe tirou o tapete velho e este aqui é novo?

Gabriela e eu estávamos sentadas no sofá, enquanto falava, mostrava o tapete novo sob a mesa de centro.

-Bonito, não acha? Comentei.

– Minha mãe jogou fora o tapete velho?

Senti que a pergunta era direta e pedia uma resposta certeira também:

-Não sei o que sua mãe fez com o tapete velho. Pode ser que ela tenha dado a alguém, guardado em algum lugar ou mesmo jogado fora. Não sei. Depois podemos perguntar a ela. Mas, com filho mais velho e filho novinho é diferente: a gente não joga fora, não dá para alguém, não troca um por outro. É diferente…

Gabriela sorriu e, depois de alguns instantes, me convidou para conhecer seu quarto. Senti que nossa conversa iria continuar. Aceitei o convite. Espalhados pelo chão do quarto havia giz de cera, canetinhas, cola, tesoura, folhas de papel e desenhos.

– Quantos desenhos! Você gosta de desenhar, não é?

– Gosto. Você viu o tapete novo do meu quarto?

– Muito bonito, heim? E gostoso para a gente sentar em cima. Sabe o que eu reparei agora? Os seus desenhos, espalhados assim pelo chão, também parecem um tapete. Se você quiser fazer um desenho, enquanto eu converso com sua mãe na sala, seria legal. Mas, só se você tiver vontade.

Fiquei conversando com Fernanda, a mãe das meninas, na sala. Gabriela esteve conosco no começo, depois foi para seu quarto e, ao final do atendimento de sua mãe, me trouxe o desenho de dois tapetes recortados e colados sobre um sulfite, explicando-me:

– Tem dois tapetes. Este é um casulo segurando duas flores e neste, do lado, é a borboleta que saiu do casulo.

Elogiei seu trabalho, suas cores, a borboleta. Disse que tinha gostado especialmente da ideia de um casulo com duas mãos segurando duas flores, que eu nunca tinha visto um desses antes. Acrescentei que os tapetes estavam muito bem feitos, tinham até franjas, parecidas com mãos!

Desenho da Gabriela-1999

A expressão plástica é um ótimo recurso para compreendermos o modo como a criança está. A irmãzinha de Gabriela havia nascido, era a vida nova da casa e ela, Gabriela, a velha. Sua pergunta sobre o que a mãe fez com o tapete velho guardava certa angústia, que foi cuidada com poucas palavras. Seu desenho mostra um estado tranquilo de integrar o novo ao que já estava lá, o velho. Ele expressa esse aspecto reunidor: uma base única, a folha de papel sulfite, reúne dois tapetes – assim como o chão-base da sua casa e do seu quarto reúne as duas irmãs. A borboleta, vida que resulta do processo de metamorfose, é um símbolo forte da transformação; como se Gabriela tivesse compreendido o movimento da mudança, em que a vida não é uma linha cronológica apenas, mas um ciclo que nos torna ligados a tudo.

Agora vamos falar do campo vital, que seriam as expressões de conteúdos relacionados a perceber-se como um ser-com-outros, em processo gradual de autonomia. Na experiência crítica de ser transformado pelo nascimento do irmão, as crianças oscilam entre ser cuidado e protegido, cuidar e proteger do outro e se cuidar e se proteger. As estórias ajudam a compreender melhor.

Ser cuidado e se cuidar

Os pais me descrevem um episódio para exemplificar que o nascimento do 3º filho estava tranquilo para o 2º, de 3 anos de idade porque percebiam que ele conseguia se expressar e pedir o que precisava para se tranquilizar. Relataram-me, então, que certa vez, estavam todos, pais e três filhos, numa festa de aniversário. O 2º filho sempre fora uma criança tranquila, gostava de brincar com os amigos e de conhecer outros novos. Mas, nesta festa, especificamente, a primeira saída de toda a família junta depois do nascimento do 3º filho, o garoto não conseguia brincar tranquilamente. A todo momento aproximava-se de seus pais e perguntava: – Vocês já vão embora? Quando os pais se deram conta de que ele estava vindo repetidamente fazer a mesma pergunta e, por isso, não conseguindo brincar sossegado, convidaram-no para se sentar ali e conversar. Ele imediatamente respondeu:

– Não! Não quero sentar, quero ir brincar.

-Mas toda hora você vem perguntar se a gente está indo embora. A gente diz que não e você volta de novo?!

– Ah! É que eu não quero que vocês me deixem aqui.

– A gente não vai deixar você aqui.

Tudo era o medo de ser esquecido…na festa! Os pais não apenas traduziram verbalmente isso, mostrando ter compreendido o que o preocupava como, contaram-me, que inventaram, naquela hora, uma combinação que virou a “brincadeira da chamada”: “Filho 1? Filho 2? Filho 3?” Como o 3 era nenê, não sabia falar, então alguém da família tinha que responder por ele. Esta invenção não apenas lhe deu segurança para brincar tranquilamente naquela festa, como se tornou rotina familiar, na entrada e saída do carro.

Aqui vemos como, por mais que esta insegurança tenha surgido depois ou em função do nascimento do irmão, e mostra o medo de ser excluído dos cuidados dos pais, não tem nada de ciúme. Revela o esforço do garoto em se proteger na nova dinâmica familiar: ele percebeu que deixara de ser o caçula, sempre atendido (cuidado), para ser maior como o 1º irmão, que pode se virar sozinho (se cuidar). Com força instintiva ele se protegeu, e reivindicou o seu espaço de ter-se tornado maior, mas não o suficiente para ficar sozinho na festa.

Cuidar do outro

Hora do sono. O pai está colocando a filha maior (3,6 anos) para dormir e a mãe, o menor (40 dias), um bebê que tinha cólicas. Cada um estava em seu quarto.

-Papai, eu não consigo dormir.

-Por que será?

-E se o bebê ficar com dor de barriga à noite?

-Ah! Ele vai chorar e te acordar. É isso?

-Não! Eu não vou dormir nem acordar! Eu vou ficar com ele até passar a dor dele.

Na expressão verbal desta garotinha fica clara uma atitude empática, identificada com a dor do bebê, um gestozinho solidário, matéria de fraternidade. Cabe ainda neste campo vital todas as curiosidades e brincadeiras relacionadas com momentos de expressão natural, digamos, da vida: de ser papai e mamãe (ficar grávida colocando almofada sob a camiseta, dar de mamar, colocar filhinho para dormir, etc), as brincadeiras de médico (ficar doente, ir para o hospital, etc), as brincadeiras de morte (fingir que morreu, enterrar bichinhos, rituais de enterro e luto, etc).

Para encerrar minha exposição e ouvir as perguntas e comentários de vocês, gostaria de reformular aquela frase do início desta palestra: “Ele/a está querendo chamar a atenção, está com ciúme. É que, desde que ganhou um irmãozinho, perdeu o trono”. Agora, podemos apresenta-la assim: Ele/a está querendo atenção para entender o que foi que aconteceu. É que desde que ele/a recebeu um/a irmãozinho/a, precisa conseguir abrir espaço para acolher uma intensa transformação: tornar-se irmã/o.

[1] A Bíblia de Jerusalém. Edição em língua portuguesa; Coordenadores e Revisores exegéticos: Gilberto Gorgulho, Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson. Revisores literários: Alfredo Bosi, Antonio Cândido de Mello e Souza e outros. Edições Paulinas: 1985.

[2] CHAUÍ, Marilena. Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo- Espinosa, Voltaire, Merleau-Ponty. Editora Brasiliense: São Paulo, 1981. p.275.

 

Pai de dois: Aprendiz

O PAI DE DOIS MENINOS: APRENDIZ

São Paulo. Condomínio. Portaria. R.G. e placa do carro. Estacionamento. Calçadas curvas margeando ilhotas de gramado floridas. Aqui e ali uma e outra árvore. Portaria II. Autorização para subir. Quatro blocos dispostos em cruz e interligados internamente. Os mesmos elevadores, em uma coluna central, servem a todos os blocos. Eu me dirigia ao Bloco B.

Elevador. Desci no 9º andar. À minha frente, uma janela. À minha direita lia-se A e, à minha esquerda, C. Segui na direção do Bloco A procurando o B. Nada. Segui na direção do C. No fundo de um corredor transversal ao elevador li: D. Nada de B. Voltei à porta do elevador… Hesitei: será que não vi um possível corredor transversal deste lado A? Refiz o percurso. Nada. Duvidei da minha anotação do endereço. Mas não, na portaria ela fora confirmada! Solução: telefonei para o casal que me aguardava:

– Estou no 9º andar, vejo três letras -A, C e D- e não encontro a B. Estou meio perdida!

-Ah! Colocaram uma porta anti-incêndio em frente ao nosso corredor e a letra B ficou escondida – respondeu-me Anita.

Nisso, abriu-se a tal da porta e apareceu um menino, quatro anos talvez. Depois dele veio Anita com o telefone móvel em mãos, ainda falando comigo. Então eram eles, mãe e filho, Anita e Gustavo, que vieram me guiar. Cumprimentei-a e disse ao menino:

– Oi Gustavo, obrigada por ter vindo me buscar. Não estava encontrando seu apartamento. Que bom ver você assim crescido! A primeira vez que vim, você era nenezinho…

Já estávamos entrando na sala do apartamento. Interrompi a conversa com o menino para cumprimentar Rodrigo, o pai, e Bernardo, o bebê:

– Oi Bernardo, como você cresceu! Estive aqui quando você era bem “pititico” e “sóóóóó…” dormia. Gustavo, você também estava dormindo. Acho que tinha dado um soninho geral nas crianças da casa! Hoje está diferente: todo mundo acordado e junto aqui na sala.

Os pais, Anita e Rodrigo, haviam organizado o ambiente para que o atendimento pudesse ser ali e incluísse as duas crianças. Rodrigo estava sentado próximo ao Bernardo, que estava em uma cadeirinha para bebês e levava um brinquedo à boca. Anita sentou-se perto do marido. Gustavo tinha um tapete emborrachado, especialmente para ele, decorado com motivos infantis, encostado junto ao móvel da TV. Ele ia e voltava de seu quarto, trazendo brinquedos e dispondo-os sobre o “tapete-cidade”: estacionava carrinhos e motocicletas; criava diálogos entre bichinhos, pessoas e outros seres; colocava e retirava capa nos heróis e, de vez em quando, passava pilotando um helicóptero no céu sobre a cidade.

Logo que me sentei em frente ao Bernardo, entre o sofá onde estavam os pais e o “tapete-cidade”, Gustavo trouxe-me uma locomotiva que puxava vagões-letrinha:

– É do meu nome!

-Que legal! – respondi.

– Falta letra, perdeu. – completou.

Parênteses: o tema inicial de nossa conversa foi o das letras perdidas. Eu me perdi nos corredores do edifício por falta da letra B e, locomotivamente, Gustavo engatou nesse tema. Trouxe-me o trenzinho de letras faltantes do seu nome e, com isso, supus seu recado: “Eu também estou meio perdido” ou “Tornei-me irmão maior, perdi o lugar de pequeno da família” ou ainda “Quem sou eu, agora? Faltam algumas partes”. Gustavo estava novamente me guiando; ali já estava a trilha, ou melhor, o trilho do atendimento psicológico àquela família, sem que eu ainda o tivesse percebido claramente. De qualquer forma, mostrar-me seu trenzinho de letras faltantes era sinal da aceitação e disponibilidade de Gustavo para comigo, pessoa estranha a ele.

Nós, os adultos, conversamos sobre o final da licença maternidade; as composições domésticas e logísticas criadas para dar conta da nova rotina familiar (horários de ida e volta à pré-escola, berçário, empresa, escritório); a escolha da nova escola para o Gustavo recém-saído da creche da empresa. Especialmente a aprendizagem paterna, por vezes angustiada, de cuidar simultaneamente de duas crianças. Anita lembrou-se que a presença de sua mãe, que tirou férias do emprego para ajudá-la no início da licença maternidade, a havia tranquilizado no desafio de cuidar dos dois meninos juntos; com isso reconheceu a angústia de Rodrigo, aprendiz ainda de ser pai de dois filhos. Ele sentia-se também solitário nessa aprendizagem. Outro trilho a ser seguido neste atendimento, aliás, o mesmo, como veremos.

Enquanto conversávamos, Gustavo brincava. Quando, aberta ou veladamente, os pais o mencionavam, ele olhava para nós, interrompia suas narrativas lúdicas, sinalizava estar atento. Volta e meia eu abria o jogo, trazendo Gustavo para a conversa:

– O papai e a mamãe estão querendo entender o que estava acontecendo com você naquele dia lá, em que você ficou pulando no colo do seu pai enquanto ele falava no telefone. Você se lembra?

Em geral, ele não respondia, voltava a brincar tranquilo, como se apenas quisesse entender o que preocupava seus pais, o problema deles. Uma dessas minhas intervenções deu-se quando Anita e Rodrigo queixaram-se de que Gustavo não dormia mais na própria cama, sempre escolhendo a dos pais. A explicação mais frequente para isso é que o primeiro filho sente ciúme do nenê que dorme no quarto dos pais. Clichê psicológico. Disse a ele:

– Por que será que você anda preferindo dormir na cama do papai e da mamãe?

Desta vez ele respondeu. Neste caso o problema parecia ser dele também:

– É que… Que… Eu tive um pesadelo.

– Sério? Você se lembra dele?

Falando afoitamente e gesticulando:

– É que eu estava assim (mostrou corporalmente: em pé) e uma porta abriu sozinha. Tinha uma bola grande forçando para sair pela porta, empurrando, empurrando. Uma bola bem grande, bem grande mesmo, grande… Ia sair por cima de mim…

Gesticulando com os braços, traçava um círculo em torno de si toda vez que dizia “grande”. Com isso, as ideias de “grande” e de “redondeza” ou circularidade da bola associavam-se a ele mesmo, em sua narrativa do sonho. Em mim começaram a aparecer as primeiras possibilidades interpretativas: uma imagem onírica infantil do parto? Aproximações com seu próprio nascimento? Com o de seu irmão? Unindo seu gesto a seu relato verbal compreendi que “o grande” talvez fosse ele mesmo. O sonho dizia sim de um nascimento – do seu nascimento como irmão maior, grande. Ele era agora o recém-nascido irmão grande da família. Gustavo experimentava a dimensão, ou melhor, a esfera do grande e sua relação com o ser pequeno… Dirigindo-me aos pais, disse-lhes:

_ Toda vez que o Gustavo diz “grande”, na sua narrativa do pesadelo, ele se inclui, traça com os braços um círculo em torno de si.

Voltando-me para o Gustavo:

– Que medo deve ter dado!

– É, daí eu corri da bola. Saí correndo!

– Ufa! Que bom!

– Mas a bola vinha atrás. Eu corri. E daí vi o Bernardo no colo da minha mãe e eu pulei no colo do meu pai. E daí a gente correu e tinha um lugar com um montão de árvores… e tinha um montão de terra… um montão de terra saindo…

Rodrigo interrompeu o discurso afoito do menino, dizendo:

– Engraçado, este foi o primeiro sonho que o Gustavo nos relatou. Sonho não, pesadelo. Ele nos contou logo ao acordar, ainda assustado e… – um pouco hesitante, cuidando para não negar o que o filho dizia ter sonhado, completou: – O sonho terminava na visão da bola grande que ia atravessar a porta… não tinha continuação.

Cuidando para que o fluxo onírico do menino não se retraísse em função da ressalva de seu pai, eu disse:

-O sonho está aqui e agora, sendo narrado e sonhado de novo, com medo e tudo. A narrativa faz com que o sonho cresça e chegue em vocês. “Quem conta um conto aumenta um ponto” vale muito para contar e cuidar dos sonhos. O sonho cresceu, mas não apenas ele. O Gustavo cresceu, ou melhor, ele está amadurecendo o sonho…tentando “levezar” o pesadelo, o medo que sentiu e transmitiu a vocês naquela noite. Esta euforia agitada ao contar o sonho deixa transparecer o medo; talvez o medo de ser grande, de passar por cima do pequeno, ou de ser pequeno e ser “atropelado” pelo grande. Continuando o sonho, inventando novas partes em vigília, criando imagens posteriores à visão onírica da bola grande, ele colocou numa ordem as pessoas da família: mamães protegem seus nenês e papais, os maiores…Esta dinâmica não é a única, mas é a que o tranquiliza agora.

Anita disse:

– É, e as árvores… bem, eu adoro árvores, ele sabe disso. Anita parecia sentir-se contemplada pela introdução das árvores na narrativa do filho.

– Um presente narrado para você…- disse eu. Assim como se ele, sonhando acordado, pudesse cuidar de seu susto materno com o pesadelo dele. Na noite do pesadelo, ele não podia ser grande. Ele foi pequeno e correu para a cama de vocês. Mesmo mais calmo, ele continuou antenado com o medo, inclusive com o desconforto que o pesadelo dele causou em vocês, pais. Então, as árvores sonhadas agora, em vigília, são reparadoras, sinalizam um crescimento do Gustavo. Como se ele dissesse: “Mamãe, estou melhor, cresci um pouco e posso cuidar do seu medo por mim. Na minha visão de menino não tem só bola grande ameaçadora, tem também árvores para você.”

Rodrigo, o pai, disse:

– Ah! Sabe o que o monte de terra me lembrou? No sítio do meu pai está sendo construída uma piscina e o Gustavo sobe e desce animado naquele montanhão de terra. Não era a terra do sítio do vovô, filho? Vai ser legal quando a piscina ficar pronta…

– Eu vou e escorrego na montanha grande de terra- respondeu Gustavo mais ligado no atual estágio da construção da piscina do que na finalização dela.

Rodrigo, o aprendiz de pai de dois filhos, era quem estava vendo a piscina. Sonhava acordado com o sítio de seu pai aumentado. Casa paterna maior: seu pai, o avô de seus filhos, fazendo crescer o espaço de acolhimento familiar. Rodrigo encontrou a referência que precisava para cuidar de dois filhos ao mesmo tempo.

 

 

Nascer de irmã maior

Quando nasce um segundo filho, além da chegada do pequenino, também se inaugura o nascimento do filho mais velho, como irmão. Não apenas ele “ganhou um irmãozinho”, mas iniciou-se como irmão. Um processo feito de muitas descobertas. A começar pelo tamanho físico: muitas mães relatam que, ainda na maternidade, quando o filho mais velho chega para conhecer o irmãozinho, elas observam que o maior “cresceu da noite para o dia”…Ou foi a chegada de um novo neném que deu a referência do que é ser pequeno?! Não é à toa que encontramos, em muitas cidades do interior dos estados brasileiros, o apelido Neném, ou Ném, para o caçula da família, às vezes já com 30 anos!

Não é apenas aos olhos dos pais, porém, que os mais velhos cresceram. Eles próprios procuram “entender” o novo tamanho que têm. Buscam compreender o que é crescer; querem ver fotos de quando eram pequenos; comportam-se como bebês e, ao mesmo tempo, como chefes da casa; sentem-se amuados e pequenos e, em seguida, temem machucar o menor com sua força de gigante; fazem muxoxos de coitadinhos e, em um lance, transformam-se em heróis da casa. Transformação.

Teremos muitas oportunidades, ao longo destas postagens de abordar aspectos do nascimento do irmão maior. Aqui ressalto que isso exige um longo aprendizado e que, no caso dos primeiros filhos, especialmente quando têm entre dois e quatro anos, muitas vezes começa na referência materna e paterna. Imitar o que a mamãe faz e o que o papai faz é o começo do caminho de ser irmão: colocar almofada na barriga e ficar grávida(o); levantar a camiseta e dar de mamar; dizer que o filhinho é meu; protegê-lo de outras crianças que queiram pegá-lo; trocar fraldas; banhar; dar colo; acalantar…

Como pais de família, pais de um grupo de crianças, é muito importante nos perguntarmos o que pensamos sobre “ser irmão”, para podermos acompanhar este processo de construção de uma relação fraterna entre nossos filhos. Processo muito mais profundo do que a imitação dos comportamentos do adulto em relação ao neném, porque repleto de sentimentos intensos relacionados a acolher o outro, abrir espaço para o novo, preservar o que não pode se perder, sentir-se seguro em deixar o outro ser, descobrir a alegria de ser em companhia de alguém…

Certa feita, ao encerrar um atendimento pós-natal, Janete e Marcos, pais da Maria Fernanda (de 3 anos) e do Miguel (recém-nascido), mostraram-me este vídeo. Nele, além escutarmos o canto da menina, “recém-nascida” como irmã, e observarmos seus gestos cuidadosos para acalantar o irmãozinho, escutamos o pedido do adulto para que ela cante de novo. Ela nega, dizendo: “Não precisa”. Para Maria Fernanda havia sido suficiente. A alegria do adulto, que acompanhava uma cena de entrosamento fraterno inicial, é que queria o “bis”.

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado
É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.