Arquivos mensais: outubro 2015

Avô Josué: um co-terapeuta

                       Avô Josué: um co-terapeuta

Antonio havia nascido há 15 dias.

Era horário de almoço. A Maria das Graças, mãe do neném; o Paulo, seu “namorido” (modo como ela me apresentou o pai de Antonio); e seu Josué, avô materno do pequenino, estavam em casa aguardando pelo atendimento pós-natal. Apresentei-me a todos.

Seu Josué vestia o uniforme da firma. Homem simples, trabalhador em hora de almoço:

– Uma psicóloga para atender a gente em casa?

O atendimento domiciliar pós-natal é apenas mais um acontecimento extraordinário em meio a tantos desencadeados pela chegada do recém-nascido. Tempo de novidades e de estranhamentos.

O neném chorava. Hora da mamada.

Maria das Graças preparava-se para amamentar. Antonio é seu primeiro filho. Ela, então, vinha se descobrindo como nutriz. Além dos mamilos sensíveis e doloridos, sentia medo de não produzir leite.

No dia anterior, haviam pesado o neném no Posto de Saúde:

-E o pior é que ele ganhou peso! – disse-me ela sorrindo, meio sem graça.

Escutei e pensei, buscando compreender: “ o pior?!” Como assim? Era como se o ganho de peso do Antonio desencadeasse nela a satisfação pelo filho nutrido e, ao mesmo tempo, o medo, aparentemente injustificado, de não produzir leite. Seu sorriso foi a expressão justa da alegria pelo ganho de peso do neném e “pior” foi a palavra justa para falar de si mesma: mãe recente, insegura, temerosa e cuidadosa. Supus o que poderia estar interdito, entre a alegria e o medo: o “melhor” seria não existir incertezas, o “melhor” talvez fosse controlar a alimentação do neném com mamadeira, o “melhor” talvez fosse que nada tivesse mudado: voltar a condição feminina de ter seios e não trabalhosas e dolorosas mamas! Mas não, o “pior” é que ser mãe continuaria para sempre, sem possibilidade de retorno, sem ponto final…

– O pior é que ele ganhou peso. Repeti a frase para Maria das Graças enfatizando, com ternura, o termo “pior”.

Seu Josué, que me ouvia com muita atenção, disse:

– A senhora vê o que faz a palavra. Foi a enfermeira da maternidade dizer que a barriga do bebê fazia barulho de fome, foi só dizer que o bebê estava morrendo de fome, que ela (Maria das Graças) ficou pensando coisa. O jeito de um dizer muda o pensamento do outro. Ela mesma foi falar, agora, para a senhora, que o Antônio ganhou peso e disse: “O pior é que ele ganhou peso”. Ela disse “o pior” e não “o melhor”! A palavra, por dentro, muda o que a gente faz fora. Eu acho que ela deveria dar de mamar pensando: “eu tenho leite” e não “eu não tenho”. Virar o lado negativo para o positivo; entende?

O melhor foi que, então, com esse apoio paterno, compreensivo e esperançoso, Maria das Graças chorou e disse:

– Sabe o que dói? Não é o peito, o mamilo ou sei lá mais o que. O que dói é a saudade de minha mãe. Ela faleceu há dois anos. Eu queria falar para ela que agora eu a entendo melhor; eu sei o que é ser mãe. Como é difícil dar de mamar hoje, sem saber se, amanhã, vou ter leite.

– E eu? Sem saber se vou ter emprego amanhã! – Completou Paulo, pai de Antônio.

O pequeno Antônio despertou em seus familiares outras dimensões da oralidade. Os ruídos de sua barriga, na maternidade, ecoaram a incerteza atávica pelo alimento. A torcida materna cotidiana, pela produção de leite para o neném, talvez seja o veio feminino que penetra a origem da oração em que se reza “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Vale lembrar que oral, oração e origem têm a mesma raiz latina: os,orus que significa boca.

 

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.

 

Nascer de irmã maior

Quando nasce um segundo filho, além da chegada do pequenino, também se inaugura o nascimento do filho mais velho, como irmão. Não apenas ele “ganhou um irmãozinho”, mas iniciou-se como irmão. Um processo feito de muitas descobertas. A começar pelo tamanho físico: muitas mães relatam que, ainda na maternidade, quando o filho mais velho chega para conhecer o irmãozinho, elas observam que o maior “cresceu da noite para o dia”…Ou foi a chegada de um novo neném que deu a referência do que é ser pequeno?! Não é à toa que encontramos, em muitas cidades do interior dos estados brasileiros, o apelido Neném, ou Ném, para o caçula da família, às vezes já com 30 anos!

Não é apenas aos olhos dos pais, porém, que os mais velhos cresceram. Eles próprios procuram “entender” o novo tamanho que têm. Buscam compreender o que é crescer; querem ver fotos de quando eram pequenos; comportam-se como bebês e, ao mesmo tempo, como chefes da casa; sentem-se amuados e pequenos e, em seguida, temem machucar o menor com sua força de gigante; fazem muxoxos de coitadinhos e, em um lance, transformam-se em heróis da casa. Transformação.

Teremos muitas oportunidades, ao longo destas postagens de abordar aspectos do nascimento do irmão maior. Aqui ressalto que isso exige um longo aprendizado e que, no caso dos primeiros filhos, especialmente quando têm entre dois e quatro anos, muitas vezes começa na referência materna e paterna. Imitar o que a mamãe faz e o que o papai faz é o começo do caminho de ser irmão: colocar almofada na barriga e ficar grávida(o); levantar a camiseta e dar de mamar; dizer que o filhinho é meu; protegê-lo de outras crianças que queiram pegá-lo; trocar fraldas; banhar; dar colo; acalantar…

Como pais de família, pais de um grupo de crianças, é muito importante nos perguntarmos o que pensamos sobre “ser irmão”, para podermos acompanhar este processo de construção de uma relação fraterna entre nossos filhos. Processo muito mais profundo do que a imitação dos comportamentos do adulto em relação ao neném, porque repleto de sentimentos intensos relacionados a acolher o outro, abrir espaço para o novo, preservar o que não pode se perder, sentir-se seguro em deixar o outro ser, descobrir a alegria de ser em companhia de alguém…

Certa feita, ao encerrar um atendimento pós-natal, Janete e Marcos, pais da Maria Fernanda (de 3 anos) e do Miguel (recém-nascido), mostraram-me este vídeo. Nele, além escutarmos o canto da menina, “recém-nascida” como irmã, e observarmos seus gestos cuidadosos para acalantar o irmãozinho, escutamos o pedido do adulto para que ela cante de novo. Ela nega, dizendo: “Não precisa”. Para Maria Fernanda havia sido suficiente. A alegria do adulto, que acompanhava uma cena de entrosamento fraterno inicial, é que queria o “bis”.

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado
É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.