Arquivos mensais: novembro 2015

Canção de ninar ajuda a salvar famílias de tsunami

A canção de ninar é uma forma poético-musical que nos chega por transmissão oral. Isso significa psiquicamente um acento na oralidade, no que implica a voz e a boca humanas e no que implica uma pulsão de vida (auto conservação) e um instinto protetor da espécie.
Em dezembro de 2014, Marcelo Ninio redigiu uma matéria, para a Folha de São Paulo, intitulada: “Canção de Ninar – Música infantil que alerta para o risco de tsunami ajudou a salvar habitantes de ilha indonésia da tragédia de 2004”.
É que, em 1907, Simeulue, uma das 19 mil ilhas do arquipélago da Indonésia, já havia sido atingida por um tsunami. A narrativa dos acontecimentos trágicos, bem como os alertas para o perigo iminente passaram a ser cantados por pais para adormecerem seus filhos.
A canção de ninar fala de uma onda gigante (“smong”, no idioma local) e ensina que quando o mar recua é preciso fugir para as montanhas porque haverá brevemente uma inundação. Esta canção foi transmitida de geração em geração e, ao primeiro sinal da onda gigante em 2004, a palavra cantada “smong”, ressoou na memória coletiva. De uma população de 80 mil habitantes, apenas 7 pessoas desta ilha morreram (lembramos que a tragédia de 2004 ceifou a vida de 230 mil pessoas, 70% delas da Indonésia).
Vidas humanas foram salvas por um saber cantado às crianças. Ou seja, a canção de ninar, em seu aspecto funcional, é uma ação profilática, especialmente por seu alcance coletivo. Neste caso, o provérbio, também elemento de tradição oral, foi confirmado: “Quem canta seus males espanta”.

“Anaguú”: o som para adormecer

“Anaguú”

Maria Fernanda cantou, para seu irmão recém-nascido dormir, uma canção de ninar da tradição oral brasileira. A menina estava tão centrada e tranquila que chegou a improvisar um trechinho melódico cantado em “anaguú…anaguú…”. (Ver o vídeo postado neste blog em 12/10/2015)

Selecionei um trecho do livro, A canção de ninar brasileira: aproximações, a ser publicado pela Editora da Universidade de São Paulo, sobre a importância do som da vogal interiorizada “u” e dos sons nasais, que são unidades estéticas universais dos acalantos. Estes sons ocorreram no canto de Maria Fernanda ao entoar espontaneamente: “anaguú”.

“Nas canções de ninar, a presença dos nasais é marcante; mais do que isso, ela é intencional, porque a canção tende a acabar cantada pelo nariz, como que para não despertar a atenção do pequeno ouvinte para as articulações e dicções das consoantes e das vogais. Um som emitido pelas narinas para subtrair o ”ataque” inicial do som, uma forma de arredondá-lo. Assim, versos que se diluem em esparsas palavras que, por sua vez, desfazem-se em sons nasais (cantados e ritmados pelo nariz) é recurso comum à entoação da canção de ninar.

O hum é palavra monossilábica que pode ser pronunciada tanto pela boca quanto emitida pelo nariz. Um som curto que pode ser alongado ou reduzido, percorrer a extensão da voz de seu emissor em glissandos, ascendentes ou descendentes, ou sustentar-se sobre uma mesma altura; um som bem aberto às interpretações de seu entoador, portanto. Uma interjeição capaz de exprimir emoção, sensação, aviso, apelo, capaz enfim de transmitir diferentes mensagens dependendo das expressões faciais, corporais e das variações entoativas que a acompanhem. Unidade linguística compacta à qual se podem atribuir diferentes sentidos e que guarda a possibilidade de substituir frases e enunciados. Escreve Alfredo Bosi: “A onomatopéia e a interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais da representação e da expressão”[1]. O hum, interjeição, pode ser considerado, então, uma dessas formas primordiais e estaria relacionado, possivelmente, à origem das línguas.

Além disso, o hum é prontamente identificável no início da fala humana: um som emitido pela criança pequena nos prenúncios do sono, como um dos últimos gestos vocais antes do adormecer, espécie de murmúrio final, ou, ao despertar, uma das primeiras vocalizações que acompanha o espreguiçar-se. Som das passagens da vigília ao sono (período no qual ocorre a canção de ninar) e, vice-versa, do sono à vigília (muitos pais cantam também para acordar as crianças). O hum é uma emissão sonora que se prolongará, na vida adulta, às mais diversas situações: expressão de queixa, de espanto, de dor contida, de prazer, de desconfiança, de curiosidade, de indagação, de perplexidade, de hesitação, de afirmação, de negação e, além de todos os outros, som para cuidar do sono das crianças: elemento composicional dos acalantos. O hum parece fazer de tudo um pouco e, para ganhar sentido, necessita da participação do corpo, da voz, do gesto ou do contexto.

No extremo oposto desta gama de significações, o hum inverte-se e pode não significar nada. Justamente aí parece residir sua potencialidade hipnótica: perdendo seus coadjuvantes de significado (a expressão corporal, gestual, o contexto e variações entoativas) o hum nasal torna-se mono-tom e, como uma borracha, apaga, progressivamente, falas, notas melódicas e ruídos; desliga, enfim, a pessoa do ambiente sonoro que a cerca, conduzindo-a ao sono. Nesse caso, o hum perde e faz perder os sentidos; um som gerador de monotonia, propiciador do recolhimento, da internalização e do fechamento – para quem ouve e para quem canta. Se há algo de universal nessa unidade sonora, talvez isso se deva mais à sua potencialidade hipnótica do que à sua vasta abertura para significados. O hum nasal ocupa o lugar da não-palavra e, com isso, parece levar o ouvinte ao fundo amorfo e primeiro da linguagem humana; um elemento que pertenceria ao substrato sonoro das línguas[2].”

 

Em: “O hum nasal: de onde ‘Tudo tudo tudo’ vem”. Texto extraído da tese: Canção de ninar brasileira: aproximações. Link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-28082012-124302/pt-br.php

[1] BOSI, Alfredo. “O som no signo”. In: O ser e o tempo da poesia. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 50.

[2] O som prolongado do hum assemelha-se às entoações do principal mantra hindu, o aum. No capítulo “Antropologia do ruído”, em O som e o sentido – uma outra história das músicas, José Miguel Wisnik, acompanhando o percurso de Marius Schneider estudioso que encontrou em cosmogonias de diferentes tradições um fundamento musical escreve: “Na origem do universo, o deus se apresenta, se cria ou cria outro deus ou cria o mundo, a partir do som.[…] O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta ou da oralidade em todas as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito).” E, para exemplificar, Wisnik apresenta a significância do som oum para os hindus: “No hinduísmo, que é, como já disse, uma religião intrinsecamente musical, toda constituída em torno do poder da voz e da relevância da respiração (onde o próprio nome do deus, Brama, significa originariamente força mágica, palavra sagrada, hino, e onde todas as ocorrências míticas e eventos divinos são declaradamente recitações cantadas com caráter sacrificial, mantra), atribui-se a proferição da sílaba sagrada OUM (ou AUM), o poder de ressoar a gênese do mundo. O sopro sagrado de Atman (que consiste no próprio deus) ‘é simbolizado por um pássaro cuja cauda corresponde ao som da consoante m, enquanto a vogal a constitui a asa direita e o u a asa esquerda’”. Seja o aum (om, oum), proferido pelos hindus, seja o hum, proferido por aqueles que cuidam do sono de crianças pequenas, essa sonoridade parece conter mesmo algo de universal. (WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras e Círculo do Livro, 1989. p. 34.)

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado