Arquivos mensais: dezembro 2016

A saudade revigora o afeto

“É dura a dor do parto, mas devo partir”. Eis uma expressão popular do desafio da despedida visceralmente relacionado à maternidade.

Frequentemente, encontramos decorando as portas do quarto, da casa ou de outro local onde há um recém-nascido, uma tabuleta com o dizer: “Cheguei”. Sim, chegou para quase todos porque, para a mãe, o bebê também se foi, ao nascer.

Nessa partida encontra-se uma das principais chaves da maternidade: aprender a se despedir. Isto é: deixar alguém ir sem virar as costas, para poder observar aquele que se vai e, deixar-se ir, de maneira clara, sem sair escondido, para poder finalizar o encontro, com ‘tchau’, ‘até logo’ ou qualquer expressão de reencontro. Na situação concreta do bebê: despedir é  não “colar” (de colo) demais, para que haja “respiro”, espaço para crescer; e ir ou deixar ir, sem “descolar” depressa, para poder reconhecer o tempo mútuo de afastamento, deixando o outro em situação segura e de equilíbrio.

Certa vez, cheguei no horário agendado à casa da nova família, cujo filhinho havia nascido há 20 dias. Eram 10 horas e o pai veio atender à campainha, explicando-me que sua esposa estava terminando de tomar banho, pois o bebê ficara acordado durante um longo período na madrugada, tendo conseguido dormir apenas às 7:00 horas da manhã.

Aguardei o casal se aprontar. Então, iniciamos nossa conversa cujo núcleo foi, claro, a experiência trabalhosa diante da resistência do bebê ao sono. O que teria acontecido? Fome? Dor? Frio? Calor? O que? Perguntava-se a mãe. E vai, começou a chorar. Lembrou-se da raiva que sentiu porque o bebê não dormia. “Raiva mesmo! Sei lá, nunca pensei que sentiria isso em relação ao meu próprio filho! ” Sentia-se culpada, chorava e desculpava-se pelo cansaço. O marido aliviava-a reconhecendo vários momentos em que vinha sendo muito atenciosa com o bebê. Depois de esperarmos a fluência de todas estas manifestações, o choro inclusive e depois de termos encarado a raiva de frente, como uma força presente e importante de ser compreendida, contida e potencialmente capaz de reorientar o gesto materno e paterno, a mãe puérpera sentia-se aliviada. Sinal disso foi a mancha redonda e úmida de leite que apareceu na sua camiseta. Disse ela:

– Engraçado, na madrugada eu queria que ele [o bebê] se desligasse de mim. “Chega, dorme e me deixa dormir, caramba! ” E agora, estou com saudades, parece que faz um tempão que não o vejo. Deu vontade de ir acordá-lo. Acredita? Ser mãe é muito louco. Mas que está na hora dele mamar, está, não está?

Neste atendimento cuidou-se bem do gesto de se despedir de uma mãe recente. Ao longo da vida, a despedida tratada saudavelmente, transforma a observação de quem partiu em admiração e o “tchau” ou “até logo”,  em “adeus”. E isso não é apenas coisa de mãe, mas de pai, de filho, de neto, de avós, de ser humano.

Iniciamos este relato com um provérbio que fala sobre a dureza da dor materna e o encerraremos com a grandiosa poesia de Cecília Meireles, onde o bem mais que substantivo é um modo incerto de ser.

A MULHER E O SEU MENINO

Cecília Meireles

à Fernanda de Castro

Mulher de pedra,

que é do menino

que houve em teu doce

braço divino,

– nesse teu braço

que ainda está preso,

plácido e curvo,

à eterna ideia

de um vago peso?

“Vento do tempo

me estremeceu:

ele era pedra

da minha pedra,

mas nunca soube

se era bem meu.

Vento do tempo

passou por mim:

foi-se o menino,

deixou-me assim.

Foi sem palavras

Tão pequenino,

que ia falar?

Talvez soubesse

Eu não conheço

senão meu peito:

há outro lugar?

Têm vindo coisas:

não sei que são.

Coisas que cantam,

coisas que brilham.

Mas ele, não.

E era tão feito

só de ficar

que, embora longe,

sinto-o comigo:

meu braço é sempre

sua cadeira,

todo o meu corpo

seu espaldar.”

Mulher de pedra,

que é do menino?

“Vento do tempo

quebrou meu seio

para o arrancar.

A mim, deixou-me.

A ele, levou-o.

(Há algum lugar?)

Desde o Principio,

comigo vinha.

Meu Nascimento

nele nasceu.

Foi-se – por onde? –

tudo que eu tinha.

Ele era pedra

da minha pedra,

porém é certo

que nunca soube

se era bem meu…”

– In: Poesia CompletaVaga Música

Recomendamos para aprofundar este tema: assistir à peça “Não Posso esquecer”(em cartaz em Goiânia) e admirar a escultura de Victor Brecheret, chamada “O sepultamento” (Cemitério da Consolação, São Paulo).