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Ocupação Lydia Hortélio

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“Anaguú”: o som para adormecer

“Anaguú”

Maria Fernanda cantou, para seu irmão recém-nascido dormir, uma canção de ninar da tradição oral brasileira. A menina estava tão centrada e tranquila que chegou a improvisar um trechinho melódico cantado em “anaguú…anaguú…”. (Ver o vídeo postado neste blog em 12/10/2015)

Selecionei um trecho do livro, A canção de ninar brasileira: aproximações, a ser publicado pela Editora da Universidade de São Paulo, sobre a importância do som da vogal interiorizada “u” e dos sons nasais, que são unidades estéticas universais dos acalantos. Estes sons ocorreram no canto de Maria Fernanda ao entoar espontaneamente: “anaguú”.

“Nas canções de ninar, a presença dos nasais é marcante; mais do que isso, ela é intencional, porque a canção tende a acabar cantada pelo nariz, como que para não despertar a atenção do pequeno ouvinte para as articulações e dicções das consoantes e das vogais. Um som emitido pelas narinas para subtrair o ”ataque” inicial do som, uma forma de arredondá-lo. Assim, versos que se diluem em esparsas palavras que, por sua vez, desfazem-se em sons nasais (cantados e ritmados pelo nariz) é recurso comum à entoação da canção de ninar.

O hum é palavra monossilábica que pode ser pronunciada tanto pela boca quanto emitida pelo nariz. Um som curto que pode ser alongado ou reduzido, percorrer a extensão da voz de seu emissor em glissandos, ascendentes ou descendentes, ou sustentar-se sobre uma mesma altura; um som bem aberto às interpretações de seu entoador, portanto. Uma interjeição capaz de exprimir emoção, sensação, aviso, apelo, capaz enfim de transmitir diferentes mensagens dependendo das expressões faciais, corporais e das variações entoativas que a acompanhem. Unidade linguística compacta à qual se podem atribuir diferentes sentidos e que guarda a possibilidade de substituir frases e enunciados. Escreve Alfredo Bosi: “A onomatopéia e a interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais da representação e da expressão”[1]. O hum, interjeição, pode ser considerado, então, uma dessas formas primordiais e estaria relacionado, possivelmente, à origem das línguas.

Além disso, o hum é prontamente identificável no início da fala humana: um som emitido pela criança pequena nos prenúncios do sono, como um dos últimos gestos vocais antes do adormecer, espécie de murmúrio final, ou, ao despertar, uma das primeiras vocalizações que acompanha o espreguiçar-se. Som das passagens da vigília ao sono (período no qual ocorre a canção de ninar) e, vice-versa, do sono à vigília (muitos pais cantam também para acordar as crianças). O hum é uma emissão sonora que se prolongará, na vida adulta, às mais diversas situações: expressão de queixa, de espanto, de dor contida, de prazer, de desconfiança, de curiosidade, de indagação, de perplexidade, de hesitação, de afirmação, de negação e, além de todos os outros, som para cuidar do sono das crianças: elemento composicional dos acalantos. O hum parece fazer de tudo um pouco e, para ganhar sentido, necessita da participação do corpo, da voz, do gesto ou do contexto.

No extremo oposto desta gama de significações, o hum inverte-se e pode não significar nada. Justamente aí parece residir sua potencialidade hipnótica: perdendo seus coadjuvantes de significado (a expressão corporal, gestual, o contexto e variações entoativas) o hum nasal torna-se mono-tom e, como uma borracha, apaga, progressivamente, falas, notas melódicas e ruídos; desliga, enfim, a pessoa do ambiente sonoro que a cerca, conduzindo-a ao sono. Nesse caso, o hum perde e faz perder os sentidos; um som gerador de monotonia, propiciador do recolhimento, da internalização e do fechamento – para quem ouve e para quem canta. Se há algo de universal nessa unidade sonora, talvez isso se deva mais à sua potencialidade hipnótica do que à sua vasta abertura para significados. O hum nasal ocupa o lugar da não-palavra e, com isso, parece levar o ouvinte ao fundo amorfo e primeiro da linguagem humana; um elemento que pertenceria ao substrato sonoro das línguas[2].”

 

Em: “O hum nasal: de onde ‘Tudo tudo tudo’ vem”. Texto extraído da tese: Canção de ninar brasileira: aproximações. Link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-28082012-124302/pt-br.php

[1] BOSI, Alfredo. “O som no signo”. In: O ser e o tempo da poesia. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 50.

[2] O som prolongado do hum assemelha-se às entoações do principal mantra hindu, o aum. No capítulo “Antropologia do ruído”, em O som e o sentido – uma outra história das músicas, José Miguel Wisnik, acompanhando o percurso de Marius Schneider estudioso que encontrou em cosmogonias de diferentes tradições um fundamento musical escreve: “Na origem do universo, o deus se apresenta, se cria ou cria outro deus ou cria o mundo, a partir do som.[…] O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta ou da oralidade em todas as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito).” E, para exemplificar, Wisnik apresenta a significância do som oum para os hindus: “No hinduísmo, que é, como já disse, uma religião intrinsecamente musical, toda constituída em torno do poder da voz e da relevância da respiração (onde o próprio nome do deus, Brama, significa originariamente força mágica, palavra sagrada, hino, e onde todas as ocorrências míticas e eventos divinos são declaradamente recitações cantadas com caráter sacrificial, mantra), atribui-se a proferição da sílaba sagrada OUM (ou AUM), o poder de ressoar a gênese do mundo. O sopro sagrado de Atman (que consiste no próprio deus) ‘é simbolizado por um pássaro cuja cauda corresponde ao som da consoante m, enquanto a vogal a constitui a asa direita e o u a asa esquerda’”. Seja o aum (om, oum), proferido pelos hindus, seja o hum, proferido por aqueles que cuidam do sono de crianças pequenas, essa sonoridade parece conter mesmo algo de universal. (WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras e Círculo do Livro, 1989. p. 34.)

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

 

Nascer de irmã maior

Quando nasce um segundo filho, além da chegada do pequenino, também se inaugura o nascimento do filho mais velho, como irmão. Não apenas ele “ganhou um irmãozinho”, mas iniciou-se como irmão. Um processo feito de muitas descobertas. A começar pelo tamanho físico: muitas mães relatam que, ainda na maternidade, quando o filho mais velho chega para conhecer o irmãozinho, elas observam que o maior “cresceu da noite para o dia”…Ou foi a chegada de um novo neném que deu a referência do que é ser pequeno?! Não é à toa que encontramos, em muitas cidades do interior dos estados brasileiros, o apelido Neném, ou Ném, para o caçula da família, às vezes já com 30 anos!

Não é apenas aos olhos dos pais, porém, que os mais velhos cresceram. Eles próprios procuram “entender” o novo tamanho que têm. Buscam compreender o que é crescer; querem ver fotos de quando eram pequenos; comportam-se como bebês e, ao mesmo tempo, como chefes da casa; sentem-se amuados e pequenos e, em seguida, temem machucar o menor com sua força de gigante; fazem muxoxos de coitadinhos e, em um lance, transformam-se em heróis da casa. Transformação.

Teremos muitas oportunidades, ao longo destas postagens de abordar aspectos do nascimento do irmão maior. Aqui ressalto que isso exige um longo aprendizado e que, no caso dos primeiros filhos, especialmente quando têm entre dois e quatro anos, muitas vezes começa na referência materna e paterna. Imitar o que a mamãe faz e o que o papai faz é o começo do caminho de ser irmão: colocar almofada na barriga e ficar grávida(o); levantar a camiseta e dar de mamar; dizer que o filhinho é meu; protegê-lo de outras crianças que queiram pegá-lo; trocar fraldas; banhar; dar colo; acalantar…

Como pais de família, pais de um grupo de crianças, é muito importante nos perguntarmos o que pensamos sobre “ser irmão”, para podermos acompanhar este processo de construção de uma relação fraterna entre nossos filhos. Processo muito mais profundo do que a imitação dos comportamentos do adulto em relação ao neném, porque repleto de sentimentos intensos relacionados a acolher o outro, abrir espaço para o novo, preservar o que não pode se perder, sentir-se seguro em deixar o outro ser, descobrir a alegria de ser em companhia de alguém…

Certa feita, ao encerrar um atendimento pós-natal, Janete e Marcos, pais da Maria Fernanda (de 3 anos) e do Miguel (recém-nascido), mostraram-me este vídeo. Nele, além escutarmos o canto da menina, “recém-nascida” como irmã, e observarmos seus gestos cuidadosos para acalantar o irmãozinho, escutamos o pedido do adulto para que ela cante de novo. Ela nega, dizendo: “Não precisa”. Para Maria Fernanda havia sido suficiente. A alegria do adulto, que acompanhava uma cena de entrosamento fraterno inicial, é que queria o “bis”.

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado
É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.