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Fraternurando…

Wolfgang Amadeus Mozart nasceu em 1756, século XVIII, em Salzburg, na Áustria e compôs, inspirado em uma canção infantil francesa chamada “Ah! Vous dirai-je, Maman” (“Ah! Vou te contar, mamãe.”), as “Doze variações para piano”. Essa melodia ganhou letras pelo mundo. Letras mesmo: canta-se utilizando o abecedário em diversos idiomas. Mas também ganhou luzes celestiais: virou estrelinha que brilha. E brilha até hoje, século XXI, em muitos lugares do mundo, especialmente dentro das casas onde vêm à luz novas irmãzinhas, como a Jennifer acalentando seu irmão Gustavo, novo brasileirinho, entoando a versão que trouxe no coração, desde pequenina, do Japão onde nasceu…

A saudade revigora o afeto

“É dura a dor do parto, mas devo partir”. Eis uma expressão popular do desafio da despedida visceralmente relacionado à maternidade.

Frequentemente, encontramos decorando as portas do quarto, da casa ou de outro local onde há um recém-nascido, uma tabuleta com o dizer: “Cheguei”. Sim, chegou para quase todos porque, para a mãe, o bebê também se foi, ao nascer.

Nessa partida encontra-se uma das principais chaves da maternidade: aprender a se despedir. Isto é: deixar alguém ir sem virar as costas, para poder observar aquele que se vai e, deixar-se ir, de maneira clara, sem sair escondido, para poder finalizar o encontro, com ‘tchau’, ‘até logo’ ou qualquer expressão de reencontro. Na situação concreta do bebê: despedir é  não “colar” (de colo) demais, para que haja “respiro”, espaço para crescer; e ir ou deixar ir, sem “descolar” depressa, para poder reconhecer o tempo mútuo de afastamento, deixando o outro em situação segura e de equilíbrio.

Certa vez, cheguei no horário agendado à casa da nova família, cujo filhinho havia nascido há 20 dias. Eram 10 horas e o pai veio atender à campainha, explicando-me que sua esposa estava terminando de tomar banho, pois o bebê ficara acordado durante um longo período na madrugada, tendo conseguido dormir apenas às 7:00 horas da manhã.

Aguardei o casal se aprontar. Então, iniciamos nossa conversa cujo núcleo foi, claro, a experiência trabalhosa diante da resistência do bebê ao sono. O que teria acontecido? Fome? Dor? Frio? Calor? O que? Perguntava-se a mãe. E vai, começou a chorar. Lembrou-se da raiva que sentiu porque o bebê não dormia. “Raiva mesmo! Sei lá, nunca pensei que sentiria isso em relação ao meu próprio filho! ” Sentia-se culpada, chorava e desculpava-se pelo cansaço. O marido aliviava-a reconhecendo vários momentos em que vinha sendo muito atenciosa com o bebê. Depois de esperarmos a fluência de todas estas manifestações, o choro inclusive e depois de termos encarado a raiva de frente, como uma força presente e importante de ser compreendida, contida e potencialmente capaz de reorientar o gesto materno e paterno, a mãe puérpera sentia-se aliviada. Sinal disso foi a mancha redonda e úmida de leite que apareceu na sua camiseta. Disse ela:

– Engraçado, na madrugada eu queria que ele [o bebê] se desligasse de mim. “Chega, dorme e me deixa dormir, caramba! ” E agora, estou com saudades, parece que faz um tempão que não o vejo. Deu vontade de ir acordá-lo. Acredita? Ser mãe é muito louco. Mas que está na hora dele mamar, está, não está?

Neste atendimento cuidou-se bem do gesto de se despedir de uma mãe recente. Ao longo da vida, a despedida tratada saudavelmente, transforma a observação de quem partiu em admiração e o “tchau” ou “até logo”,  em “adeus”. E isso não é apenas coisa de mãe, mas de pai, de filho, de neto, de avós, de ser humano.

Iniciamos este relato com um provérbio que fala sobre a dureza da dor materna e o encerraremos com a grandiosa poesia de Cecília Meireles, onde o bem mais que substantivo é um modo incerto de ser.

A MULHER E O SEU MENINO

Cecília Meireles

à Fernanda de Castro

Mulher de pedra,

que é do menino

que houve em teu doce

braço divino,

– nesse teu braço

que ainda está preso,

plácido e curvo,

à eterna ideia

de um vago peso?

“Vento do tempo

me estremeceu:

ele era pedra

da minha pedra,

mas nunca soube

se era bem meu.

Vento do tempo

passou por mim:

foi-se o menino,

deixou-me assim.

Foi sem palavras

Tão pequenino,

que ia falar?

Talvez soubesse

Eu não conheço

senão meu peito:

há outro lugar?

Têm vindo coisas:

não sei que são.

Coisas que cantam,

coisas que brilham.

Mas ele, não.

E era tão feito

só de ficar

que, embora longe,

sinto-o comigo:

meu braço é sempre

sua cadeira,

todo o meu corpo

seu espaldar.”

Mulher de pedra,

que é do menino?

“Vento do tempo

quebrou meu seio

para o arrancar.

A mim, deixou-me.

A ele, levou-o.

(Há algum lugar?)

Desde o Principio,

comigo vinha.

Meu Nascimento

nele nasceu.

Foi-se – por onde? –

tudo que eu tinha.

Ele era pedra

da minha pedra,

porém é certo

que nunca soube

se era bem meu…”

– In: Poesia CompletaVaga Música

Recomendamos para aprofundar este tema: assistir à peça “Não Posso esquecer”(em cartaz em Goiânia) e admirar a escultura de Victor Brecheret, chamada “O sepultamento” (Cemitério da Consolação, São Paulo).

 

A CASA E O COLO

Abraço de Vó

Em 28 de dezembro de 2015, os meios de comunicação noticiaram a sobrevivência de Maria Luíza, uma garotinha de um ano e oito meses, protegida pela avó durante forte temporal. Uma das manchetes sobre o assunto anunciava: ” Criança é salva de deslizamento por abraço de avó”. Marisa (47 anos), a avó, era mãe de Yasmim (19 anos), por sua vez, mãe da pequenina. Ambas morreram soterradas. Maria Luíza, órfã duplamente: de mãe e de mãe da mãe. Toda a família (marido, três filhos e quatro netos) sofreu desta orfandade: “Dona Marisa? Não tenho nem palavras. Ela ajudava, dava conselhos. Nunca deixou de fazer nada pelos filhos, pelos netos. Tanto é que morreu pela neta” – disse sua nora para uma repórter.

Itapecerica da Serra – cujo nome tupi significa pedra nua coberta por lençol de água corrente, incrustada em encostas e morros – foi a cidade da vez da tragédia. A pedra úmida de lágrimas da terra brilha hoje naquela serra. Itapecerica é apenas mais uma entre tantas cidades brasileiras cujo sofrimento expõe a falta de proteção efetiva e o descaso político com a necessidade humana básica de morar em paz, poder se recolher e se abrigar das intempéries, sentir-se confortável e tranquilo para dormir… tal como a Maria Luíza certamente se sentiu no colo de Yasmim ou de Marisa, antes de 28 de dezembro.

Faísca

Certa feita, no verão de 2012, atendi Natalie e seu filho Mateus, com vinte dias de vida, na sua residência situada em uma viela estreita, cujo único acesso se faz por uma via marginal da Rodovia Castelo Branco, na região de Osasco/Carapicuíba (SP). Viela onde passa apenas um carro, mas que, mesmo assim, possui mão dupla. Trânsito confuso, portanto.

Subi vários lances de escada com degraus de cimento bruto, irregulares em altura, largura e profundidade, e cheguei ao cômodo que abrigava mãe e nenê. Era o último patamar de uma espécie de edifício construído sobre a fundação de uma “casa-mãe”, ou melhor, “casa-avó”.

– Deve ter sido puxado subir esta escadaria durante sua gravidez, principalmente no final, não? – Perguntei à Natalie.

– O pior foi quando voltei do hospital, por causa da cesárea. Daí não deu mesmo, precisei ficar lá embaixo, na casa da avó do meu marido – aquela senhora que abriu o portão para você. Subi antes de ontem aqui para o nosso cantinho, né bebê da mamãe?

E continuou bem-humorada:

– Na gravidez? Subia todo dia contando os 42 degraus, cada vez mais lentamente, respirando e torcendo para não ter esquecido nada lá embaixo. Já sei de cor, mas não salteado, como é cada degrau!

Moravam em um quarto/sala/cozinha e banheiro pequeno e cuidado com muito capricho: paredes pintadas, cozinha e banheiro azulejados, ambientes mobiliados e aconchegados por almofadinhas e toalhinhas de crochê – artes das mulheres habitantes do edifício familiar improvisado a cada novo casamento ou nascimento. O cantinho do nenê era delimitado, no quarto, por um papel de parede com motivos infantis: pipas e pássaros em um fundo de céu azul com sol e algumas nuvens.

Lá fora, porém, o céu era outro. O calor era tremendo, desses abafamentos típicos que precedem tempestades de verão. E vinha! Pela única janela eu podia avistar o céu cinzento e denso, riscado de raios. Ouvia-se trovoadas secas. Armava-se o temporal.

Natalie estava indecisa quanto a manter a janela aberta:

– O que acha? – Perguntou gesticulando para que eu me aproximasse da janela junto com ela.

Levantei-me e fui. Foi impressionante o que vi: um emaranhado de fios elétricos de alta tensão e cabos telefônicos pendurados caoticamente ao poste, que ficava em frente à janela. O nó era tamanho que mal se via a calçada estreita lá embaixo.

– Estou com medo destes raios e relâmpagos caírem nos fios. Será que não faísca? Se eu fechar a janela, vai ficar mais abafado, não adianta nada. Você se incomoda de a gente ir para a casa da avó do meu marido?

E foram descidos os 42 degraus. Natalie estava com o Mateus no colo e eu carregava a sacola do nenê, mesmo que ela insistisse delicadamente que poderia carregá-la sozinha. Para convencê-la definitivamente, eu disse em tom leve, quase brincando, que psicólogo também sente medo.

É que descer aquela escada de difíceis degraus e escura, àquela hora, acompanhando uma mulher em recuperação cirúrgica e puerperal, com seu nenê recém-nascido no colo, ao som de sinistros trovões e receosa com as descargas elétricas e possíveis faíscas era uma situação de risco que nos atingia.

O medo é uma emoção que se encontra aumentada nos adultos que zelam pelo recém-nascido, especialmente a mãe, no período pós-parto. Mesmo que desconfortável, o medo é fundamental porque, para proteger o nenê, é necessário que se reconheça sua condição de ser mortal e isso assusta. Esse núcleo do medo da morte do filho é tratado com atenção nos atendimentos psicológicos que realizamos no período pós-natal, por sua importância psicoprofilática. Porém, tratá-lo bem exige o reconhecimento urgente de questões objetivas e não apenas psicológicas que o influenciam. Problemas econômicos e sociais crônicos, políticas públicas ineficientes, qualidade precária de moradia são exemplos de dificuldades que atingem a casa da mãe – ou da avó- brasileira em sua função ninho de ser. A possibilidade negligenciada de inundação, deslizamento, soterramento, incêndio nas moradias afetam sobremaneira a casa-ninho do nenê: o colo.