Arquivos mensais: dezembro 2015

Pai de dois: Aprendiz

O PAI DE DOIS MENINOS: APRENDIZ

São Paulo. Condomínio. Portaria. R.G. e placa do carro. Estacionamento. Calçadas curvas margeando ilhotas de gramado floridas. Aqui e ali uma e outra árvore. Portaria II. Autorização para subir. Quatro blocos dispostos em cruz e interligados internamente. Os mesmos elevadores, em uma coluna central, servem a todos os blocos. Eu me dirigia ao Bloco B.

Elevador. Desci no 9º andar. À minha frente, uma janela. À minha direita lia-se A e, à minha esquerda, C. Segui na direção do Bloco A procurando o B. Nada. Segui na direção do C. No fundo de um corredor transversal ao elevador li: D. Nada de B. Voltei à porta do elevador… Hesitei: será que não vi um possível corredor transversal deste lado A? Refiz o percurso. Nada. Duvidei da minha anotação do endereço. Mas não, na portaria ela fora confirmada! Solução: telefonei para o casal que me aguardava:

– Estou no 9º andar, vejo três letras -A, C e D- e não encontro a B. Estou meio perdida!

-Ah! Colocaram uma porta anti-incêndio em frente ao nosso corredor e a letra B ficou escondida – respondeu-me Anita.

Nisso, abriu-se a tal da porta e apareceu um menino, quatro anos talvez. Depois dele veio Anita com o telefone móvel em mãos, ainda falando comigo. Então eram eles, mãe e filho, Anita e Gustavo, que vieram me guiar. Cumprimentei-a e disse ao menino:

– Oi Gustavo, obrigada por ter vindo me buscar. Não estava encontrando seu apartamento. Que bom ver você assim crescido! A primeira vez que vim, você era nenezinho…

Já estávamos entrando na sala do apartamento. Interrompi a conversa com o menino para cumprimentar Rodrigo, o pai, e Bernardo, o bebê:

– Oi Bernardo, como você cresceu! Estive aqui quando você era bem “pititico” e “sóóóóó…” dormia. Gustavo, você também estava dormindo. Acho que tinha dado um soninho geral nas crianças da casa! Hoje está diferente: todo mundo acordado e junto aqui na sala.

Os pais, Anita e Rodrigo, haviam organizado o ambiente para que o atendimento pudesse ser ali e incluísse as duas crianças. Rodrigo estava sentado próximo ao Bernardo, que estava em uma cadeirinha para bebês e levava um brinquedo à boca. Anita sentou-se perto do marido. Gustavo tinha um tapete emborrachado, especialmente para ele, decorado com motivos infantis, encostado junto ao móvel da TV. Ele ia e voltava de seu quarto, trazendo brinquedos e dispondo-os sobre o “tapete-cidade”: estacionava carrinhos e motocicletas; criava diálogos entre bichinhos, pessoas e outros seres; colocava e retirava capa nos heróis e, de vez em quando, passava pilotando um helicóptero no céu sobre a cidade.

Logo que me sentei em frente ao Bernardo, entre o sofá onde estavam os pais e o “tapete-cidade”, Gustavo trouxe-me uma locomotiva que puxava vagões-letrinha:

– É do meu nome!

-Que legal! – respondi.

– Falta letra, perdeu. – completou.

Parênteses: o tema inicial de nossa conversa foi o das letras perdidas. Eu me perdi nos corredores do edifício por falta da letra B e, locomotivamente, Gustavo engatou nesse tema. Trouxe-me o trenzinho de letras faltantes do seu nome e, com isso, supus seu recado: “Eu também estou meio perdido” ou “Tornei-me irmão maior, perdi o lugar de pequeno da família” ou ainda “Quem sou eu, agora? Faltam algumas partes”. Gustavo estava novamente me guiando; ali já estava a trilha, ou melhor, o trilho do atendimento psicológico àquela família, sem que eu ainda o tivesse percebido claramente. De qualquer forma, mostrar-me seu trenzinho de letras faltantes era sinal da aceitação e disponibilidade de Gustavo para comigo, pessoa estranha a ele.

Nós, os adultos, conversamos sobre o final da licença maternidade; as composições domésticas e logísticas criadas para dar conta da nova rotina familiar (horários de ida e volta à pré-escola, berçário, empresa, escritório); a escolha da nova escola para o Gustavo recém-saído da creche da empresa. Especialmente a aprendizagem paterna, por vezes angustiada, de cuidar simultaneamente de duas crianças. Anita lembrou-se que a presença de sua mãe, que tirou férias do emprego para ajudá-la no início da licença maternidade, a havia tranquilizado no desafio de cuidar dos dois meninos juntos; com isso reconheceu a angústia de Rodrigo, aprendiz ainda de ser pai de dois filhos. Ele sentia-se também solitário nessa aprendizagem. Outro trilho a ser seguido neste atendimento, aliás, o mesmo, como veremos.

Enquanto conversávamos, Gustavo brincava. Quando, aberta ou veladamente, os pais o mencionavam, ele olhava para nós, interrompia suas narrativas lúdicas, sinalizava estar atento. Volta e meia eu abria o jogo, trazendo Gustavo para a conversa:

– O papai e a mamãe estão querendo entender o que estava acontecendo com você naquele dia lá, em que você ficou pulando no colo do seu pai enquanto ele falava no telefone. Você se lembra?

Em geral, ele não respondia, voltava a brincar tranquilo, como se apenas quisesse entender o que preocupava seus pais, o problema deles. Uma dessas minhas intervenções deu-se quando Anita e Rodrigo queixaram-se de que Gustavo não dormia mais na própria cama, sempre escolhendo a dos pais. A explicação mais frequente para isso é que o primeiro filho sente ciúme do nenê que dorme no quarto dos pais. Clichê psicológico. Disse a ele:

– Por que será que você anda preferindo dormir na cama do papai e da mamãe?

Desta vez ele respondeu. Neste caso o problema parecia ser dele também:

– É que… Que… Eu tive um pesadelo.

– Sério? Você se lembra dele?

Falando afoitamente e gesticulando:

– É que eu estava assim (mostrou corporalmente: em pé) e uma porta abriu sozinha. Tinha uma bola grande forçando para sair pela porta, empurrando, empurrando. Uma bola bem grande, bem grande mesmo, grande… Ia sair por cima de mim…

Gesticulando com os braços, traçava um círculo em torno de si toda vez que dizia “grande”. Com isso, as ideias de “grande” e de “redondeza” ou circularidade da bola associavam-se a ele mesmo, em sua narrativa do sonho. Em mim começaram a aparecer as primeiras possibilidades interpretativas: uma imagem onírica infantil do parto? Aproximações com seu próprio nascimento? Com o de seu irmão? Unindo seu gesto a seu relato verbal compreendi que “o grande” talvez fosse ele mesmo. O sonho dizia sim de um nascimento – do seu nascimento como irmão maior, grande. Ele era agora o recém-nascido irmão grande da família. Gustavo experimentava a dimensão, ou melhor, a esfera do grande e sua relação com o ser pequeno… Dirigindo-me aos pais, disse-lhes:

_ Toda vez que o Gustavo diz “grande”, na sua narrativa do pesadelo, ele se inclui, traça com os braços um círculo em torno de si.

Voltando-me para o Gustavo:

– Que medo deve ter dado!

– É, daí eu corri da bola. Saí correndo!

– Ufa! Que bom!

– Mas a bola vinha atrás. Eu corri. E daí vi o Bernardo no colo da minha mãe e eu pulei no colo do meu pai. E daí a gente correu e tinha um lugar com um montão de árvores… e tinha um montão de terra… um montão de terra saindo…

Rodrigo interrompeu o discurso afoito do menino, dizendo:

– Engraçado, este foi o primeiro sonho que o Gustavo nos relatou. Sonho não, pesadelo. Ele nos contou logo ao acordar, ainda assustado e… – um pouco hesitante, cuidando para não negar o que o filho dizia ter sonhado, completou: – O sonho terminava na visão da bola grande que ia atravessar a porta… não tinha continuação.

Cuidando para que o fluxo onírico do menino não se retraísse em função da ressalva de seu pai, eu disse:

-O sonho está aqui e agora, sendo narrado e sonhado de novo, com medo e tudo. A narrativa faz com que o sonho cresça e chegue em vocês. “Quem conta um conto aumenta um ponto” vale muito para contar e cuidar dos sonhos. O sonho cresceu, mas não apenas ele. O Gustavo cresceu, ou melhor, ele está amadurecendo o sonho…tentando “levezar” o pesadelo, o medo que sentiu e transmitiu a vocês naquela noite. Esta euforia agitada ao contar o sonho deixa transparecer o medo; talvez o medo de ser grande, de passar por cima do pequeno, ou de ser pequeno e ser “atropelado” pelo grande. Continuando o sonho, inventando novas partes em vigília, criando imagens posteriores à visão onírica da bola grande, ele colocou numa ordem as pessoas da família: mamães protegem seus nenês e papais, os maiores…Esta dinâmica não é a única, mas é a que o tranquiliza agora.

Anita disse:

– É, e as árvores… bem, eu adoro árvores, ele sabe disso. Anita parecia sentir-se contemplada pela introdução das árvores na narrativa do filho.

– Um presente narrado para você…- disse eu. Assim como se ele, sonhando acordado, pudesse cuidar de seu susto materno com o pesadelo dele. Na noite do pesadelo, ele não podia ser grande. Ele foi pequeno e correu para a cama de vocês. Mesmo mais calmo, ele continuou antenado com o medo, inclusive com o desconforto que o pesadelo dele causou em vocês, pais. Então, as árvores sonhadas agora, em vigília, são reparadoras, sinalizam um crescimento do Gustavo. Como se ele dissesse: “Mamãe, estou melhor, cresci um pouco e posso cuidar do seu medo por mim. Na minha visão de menino não tem só bola grande ameaçadora, tem também árvores para você.”

Rodrigo, o pai, disse:

– Ah! Sabe o que o monte de terra me lembrou? No sítio do meu pai está sendo construída uma piscina e o Gustavo sobe e desce animado naquele montanhão de terra. Não era a terra do sítio do vovô, filho? Vai ser legal quando a piscina ficar pronta…

– Eu vou e escorrego na montanha grande de terra- respondeu Gustavo mais ligado no atual estágio da construção da piscina do que na finalização dela.

Rodrigo, o aprendiz de pai de dois filhos, era quem estava vendo a piscina. Sonhava acordado com o sítio de seu pai aumentado. Casa paterna maior: seu pai, o avô de seus filhos, fazendo crescer o espaço de acolhimento familiar. Rodrigo encontrou a referência que precisava para cuidar de dois filhos ao mesmo tempo.