AMAMENTAÇÃO E LIBERDADE

LIBERDADE E AMAMENTAÇÃO

 

Controlar é uma ação de poder, cuidar é um gesto de amor. A passagem da primeira para a segunda atitude é um longo aprendizado no caminho de ser pai e mãe. O desafio, porém, aparece muito cedo e, de cara, muito profundamente. Por exemplo, no início da amamentação.

A queixa da Mariana, mãe do Felipe (35 dias), foi que o bebê havia mamado bem apenas nos 15 primeiros dias sendo que, nos últimos 20, veio se desinteressando do peito gradativamente e, agora, a amamentação tinha se tornado uma guerra: ela insistindo em amamentá-lo e ele se negando a isso.

– O Felipe só aceita mamar se o peito estiver bem cheio de leite – o que não tem sido nada frequente, talvez porque introduzimos a mamadeira, por orientação do pediatra na última consulta, na semana passada. Fiquei tão mal com isso! Não queria dar mamadeira. Não teve jeito. Mas é que o Felipe não quer saber de peito. Mama um pouquinho e já larga. Pior ainda, o leite tem que sair rápido, se não ele já se debate, vira a cabeça para lado oposto, fica agitado e rejeita o peito. O meu marido brincou que ele puxou a mim: executiva quer tudo rápido!

Mariana dizia isto com uma mistura de frustração, impotência e desânimo.

– Como ele me rejeita se estou fazendo tudo certinho? Pensei que o parto seria uma experiência difícil, mas o aleitamento é muito mais: a gente não controla nada, nada acontece como a gente espera.

E, com o semblante circunspecto reconhecia em si o que a entristecia:

– Eu quero dar de mamar, mas o que que adianta? O Felipe não me aceita!

Entre a observação de um comportamento do bebê (rejeitar o peito) e a leitura afetiva feita (ser rejeitada, não se sentir aceita) existe uma boa distância, mas Mariana parecia rondar esse núcleo da aceitação/rejeição e reduzir sua experiência materna ao seu peito e ao aleitamento:

-Desde que o Felipe nasceu eu me tornei um peito ambulante.

A impressão que eu ia recebendo ao escutar Mariana era a de alguém que se sentia aprisionada, como se, transitando pela “estrada materna”, tivesse se deparado com uma rotatória de retorno e, sem enxergar saída, girasse perdidamente em torno de um mesmo ponto: não era possível retornar e não era possível avançar. Que rumo tomar? Seu caminho de ser mãe estava obscurecido por sombras afetivas e o único foco de luz era a amamentação. Daí a auto cobrança acentuada quanto ao sucesso do aleitamento, como se ela formulasse: “se conseguir amamentar, estarei na via certa de ser mãe”.

Um ponto me intrigou: o que teria acontecido por volta do 15º dia do bebê que levou o aleitamento a desandar? Mariana respondeu:

– Não sei, havíamos saído da consulta pediátrica. Eu estava contente, aliviada, tipo missão cumprida. Felipe tinha engordado bastante, mais do que o esperado. E, não sei o que houve, naquela mesmo dia, à noite, começou essa história de chorar muito depois de mamar. Pensamos até que fosse cólica, cansaço por ter saído de casa para ir ao médico, fome… pensamos em tudo. Nos dias seguintes foi piorando: virava o rosto, batia no meu peito, se debatia e chorava. Ah! Virou essa guerra que continua: eu querendo dar o peito e ele se recusando a mamar.

– Na primeira mamada depois da consulta com o pediatra, você se lembra como estava se sentindo?

-Eu lembro que me senti muito aliviada na saída da consulta. Mas na mamada…

– Assim: “Ufa! Já sei que consigo cuidar do meu bebê! ”

– É. Ele ter engordado foi gratificante.

– Daí, então, por estar aliviada, talvez você tenha se sentido mais relaxada e, na mamada seguinte, tenha podido ver alguma coisa diferente, o foco saiu da eficiência da mamada. O que será que você viu então?

– Não sei. Ele começou a chorar e eu só pensei em cuidar dele.

Lembrei-me de uma máxima popular que escutei no interior de Minas Gerais e tive certeza do rumo dessa conversa terapêutica:

_ Você já ouviu o provérbio: “Desde que pari minha boca não enchi”? Na sabedoria popular a mãe se coloca depois do filho, na ordem do cuidado. Como o Felipe estava fortinho e engordara bem, você poderia cuidar de alguma outra questão, mais sua. Talvez um pouco antes dele chorar você…

Mariana me interrompeu:

-Eu estava muito cansada também, queria chorar…

-Chorou?

-Ele chorou.

-Daí você foi atende-lo e se esqueceu de chorar? Você chorou? Esqueceu-se também do motivo do seu choro?

-Eu estava pensando em como minha vida mudou. Eu, executiva gerindo um time de doze pessoas, trabalhando fora desde os 19 anos, não sabia que ter um filho significava uma rotina tão doméstica, enfiada no apartamento 24 horas por dia, fazendo só cuidar de bebê, sem sair de casa, tendo que dar de mamar, ficar à disposição…Can-sa-da e me sentindo…posso falar? Prisioneira, refém de um bebê.

Mariana começou a chorar intensamente, aquele choro urgente, de 20 dias atrás. Quando se acalmou, comentei:

– Acho que rompeu a bolsa lacrima…. Libertou-se a refém…

– Sabe o que eu pensei agora, chorando? Que eu estava vivendo o meu próprio parto como mãe. O choro do Felipe fica me chamando, me obrigando a ser mãe. Mas não é ele quem controla isso. Eu quis ser mãe. Hoje parece que eu decidi, de novo, ser mãe.

-A questão não é quem controla quem. O desafio é aprender outra língua, que não é a do controle. A gente não manda no bebê. E ele só manda na gente se a gente estiver nessa perspectiva do controle. Olha o que aconteceu com você agora: chorando, deixando uma emoção ir se dando, deixando alguma coisa meio estranha a você se processar, você chegou no seu ponto atual materno, “decidiu de novo ser mãe”. De novo quer dizer “com novidade”, nascimento. Já ouviu aquela expressão “vem vindo novidade” para dizer que alguém está grávida? O Felipe estava chorando por dois: por ele e por você! Mãe recém-nascida precisa ficar um pouco no ninho, tal como o nenê. Quantas mulheres se enganam e procedem um desmame precoce acreditando que se verão livres para sair!? Mas, o estado recém-nascido de ser não é definitivo. Já, já você estará passeando por aí, às vezes com o Felipe, outras sozinha, outras ainda com seu marido, com sua família, com amigos. O vínculo com o nenê é fundamental, a amamentação o fortalece. Esse vínculo aprisiona apenas quando a perspectiva de controlar a vida se sobrepõe à de cuidar dela, seja a do filho ou da nossa própria. Hoje, aqui, você se cuidou. Chorar “descontroladamente” era necessário para aliviar a sensação de aprisionamento e chegar no seu lugar de mãe.

– Eu e o Felipe teremos tempo. Eu percebi que eu já queria que tudo estivesse pronto e certo. Dá para retirar a mamadeira e ficar só no peito de novo? Hum, de novo…

Saí deste atendimento pensando que a amamentação é um caminho muito particular de liberdade. Por isso amamentar é maior que um ato, é um gesto: asas fortes estão por vir!

 

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