A CASA E O COLO

Abraço de Vó

Em 28 de dezembro de 2015, os meios de comunicação noticiaram a sobrevivência de Maria Luíza, uma garotinha de um ano e oito meses, protegida pela avó durante forte temporal. Uma das manchetes sobre o assunto anunciava: ” Criança é salva de deslizamento por abraço de avó”. Marisa (47 anos), a avó, era mãe de Yasmim (19 anos), por sua vez, mãe da pequenina. Ambas morreram soterradas. Maria Luíza, órfã duplamente: de mãe e de mãe da mãe. Toda a família (marido, três filhos e quatro netos) sofreu desta orfandade: “Dona Marisa? Não tenho nem palavras. Ela ajudava, dava conselhos. Nunca deixou de fazer nada pelos filhos, pelos netos. Tanto é que morreu pela neta” – disse sua nora para uma repórter.

Itapecerica da Serra – cujo nome tupi significa pedra nua coberta por lençol de água corrente, incrustada em encostas e morros – foi a cidade da vez da tragédia. A pedra úmida de lágrimas da terra brilha hoje naquela serra. Itapecerica é apenas mais uma entre tantas cidades brasileiras cujo sofrimento expõe a falta de proteção efetiva e o descaso político com a necessidade humana básica de morar em paz, poder se recolher e se abrigar das intempéries, sentir-se confortável e tranquilo para dormir… tal como a Maria Luíza certamente se sentiu no colo de Yasmim ou de Marisa, antes de 28 de dezembro.

Faísca

Certa feita, no verão de 2012, atendi Natalie e seu filho Mateus, com vinte dias de vida, na sua residência situada em uma viela estreita, cujo único acesso se faz por uma via marginal da Rodovia Castelo Branco, na região de Osasco/Carapicuíba (SP). Viela onde passa apenas um carro, mas que, mesmo assim, possui mão dupla. Trânsito confuso, portanto.

Subi vários lances de escada com degraus de cimento bruto, irregulares em altura, largura e profundidade, e cheguei ao cômodo que abrigava mãe e nenê. Era o último patamar de uma espécie de edifício construído sobre a fundação de uma “casa-mãe”, ou melhor, “casa-avó”.

– Deve ter sido puxado subir esta escadaria durante sua gravidez, principalmente no final, não? – Perguntei à Natalie.

– O pior foi quando voltei do hospital, por causa da cesárea. Daí não deu mesmo, precisei ficar lá embaixo, na casa da avó do meu marido – aquela senhora que abriu o portão para você. Subi antes de ontem aqui para o nosso cantinho, né bebê da mamãe?

E continuou bem-humorada:

– Na gravidez? Subia todo dia contando os 42 degraus, cada vez mais lentamente, respirando e torcendo para não ter esquecido nada lá embaixo. Já sei de cor, mas não salteado, como é cada degrau!

Moravam em um quarto/sala/cozinha e banheiro pequeno e cuidado com muito capricho: paredes pintadas, cozinha e banheiro azulejados, ambientes mobiliados e aconchegados por almofadinhas e toalhinhas de crochê – artes das mulheres habitantes do edifício familiar improvisado a cada novo casamento ou nascimento. O cantinho do nenê era delimitado, no quarto, por um papel de parede com motivos infantis: pipas e pássaros em um fundo de céu azul com sol e algumas nuvens.

Lá fora, porém, o céu era outro. O calor era tremendo, desses abafamentos típicos que precedem tempestades de verão. E vinha! Pela única janela eu podia avistar o céu cinzento e denso, riscado de raios. Ouvia-se trovoadas secas. Armava-se o temporal.

Natalie estava indecisa quanto a manter a janela aberta:

– O que acha? – Perguntou gesticulando para que eu me aproximasse da janela junto com ela.

Levantei-me e fui. Foi impressionante o que vi: um emaranhado de fios elétricos de alta tensão e cabos telefônicos pendurados caoticamente ao poste, que ficava em frente à janela. O nó era tamanho que mal se via a calçada estreita lá embaixo.

– Estou com medo destes raios e relâmpagos caírem nos fios. Será que não faísca? Se eu fechar a janela, vai ficar mais abafado, não adianta nada. Você se incomoda de a gente ir para a casa da avó do meu marido?

E foram descidos os 42 degraus. Natalie estava com o Mateus no colo e eu carregava a sacola do nenê, mesmo que ela insistisse delicadamente que poderia carregá-la sozinha. Para convencê-la definitivamente, eu disse em tom leve, quase brincando, que psicólogo também sente medo.

É que descer aquela escada de difíceis degraus e escura, àquela hora, acompanhando uma mulher em recuperação cirúrgica e puerperal, com seu nenê recém-nascido no colo, ao som de sinistros trovões e receosa com as descargas elétricas e possíveis faíscas era uma situação de risco que nos atingia.

O medo é uma emoção que se encontra aumentada nos adultos que zelam pelo recém-nascido, especialmente a mãe, no período pós-parto. Mesmo que desconfortável, o medo é fundamental porque, para proteger o nenê, é necessário que se reconheça sua condição de ser mortal e isso assusta. Esse núcleo do medo da morte do filho é tratado com atenção nos atendimentos psicológicos que realizamos no período pós-natal, por sua importância psicoprofilática. Porém, tratá-lo bem exige o reconhecimento urgente de questões objetivas e não apenas psicológicas que o influenciam. Problemas econômicos e sociais crônicos, políticas públicas ineficientes, qualidade precária de moradia são exemplos de dificuldades que atingem a casa da mãe – ou da avó- brasileira em sua função ninho de ser. A possibilidade negligenciada de inundação, deslizamento, soterramento, incêndio nas moradias afetam sobremaneira a casa-ninho do nenê: o colo.

Pai de dois: Aprendiz

O PAI DE DOIS MENINOS: APRENDIZ

São Paulo. Condomínio. Portaria. R.G. e placa do carro. Estacionamento. Calçadas curvas margeando ilhotas de gramado floridas. Aqui e ali uma e outra árvore. Portaria II. Autorização para subir. Quatro blocos dispostos em cruz e interligados internamente. Os mesmos elevadores, em uma coluna central, servem a todos os blocos. Eu me dirigia ao Bloco B.

Elevador. Desci no 9º andar. À minha frente, uma janela. À minha direita lia-se A e, à minha esquerda, C. Segui na direção do Bloco A procurando o B. Nada. Segui na direção do C. No fundo de um corredor transversal ao elevador li: D. Nada de B. Voltei à porta do elevador… Hesitei: será que não vi um possível corredor transversal deste lado A? Refiz o percurso. Nada. Duvidei da minha anotação do endereço. Mas não, na portaria ela fora confirmada! Solução: telefonei para o casal que me aguardava:

– Estou no 9º andar, vejo três letras -A, C e D- e não encontro a B. Estou meio perdida!

-Ah! Colocaram uma porta anti-incêndio em frente ao nosso corredor e a letra B ficou escondida – respondeu-me Anita.

Nisso, abriu-se a tal da porta e apareceu um menino, quatro anos talvez. Depois dele veio Anita com o telefone móvel em mãos, ainda falando comigo. Então eram eles, mãe e filho, Anita e Gustavo, que vieram me guiar. Cumprimentei-a e disse ao menino:

– Oi Gustavo, obrigada por ter vindo me buscar. Não estava encontrando seu apartamento. Que bom ver você assim crescido! A primeira vez que vim, você era nenezinho…

Já estávamos entrando na sala do apartamento. Interrompi a conversa com o menino para cumprimentar Rodrigo, o pai, e Bernardo, o bebê:

– Oi Bernardo, como você cresceu! Estive aqui quando você era bem “pititico” e “sóóóóó…” dormia. Gustavo, você também estava dormindo. Acho que tinha dado um soninho geral nas crianças da casa! Hoje está diferente: todo mundo acordado e junto aqui na sala.

Os pais, Anita e Rodrigo, haviam organizado o ambiente para que o atendimento pudesse ser ali e incluísse as duas crianças. Rodrigo estava sentado próximo ao Bernardo, que estava em uma cadeirinha para bebês e levava um brinquedo à boca. Anita sentou-se perto do marido. Gustavo tinha um tapete emborrachado, especialmente para ele, decorado com motivos infantis, encostado junto ao móvel da TV. Ele ia e voltava de seu quarto, trazendo brinquedos e dispondo-os sobre o “tapete-cidade”: estacionava carrinhos e motocicletas; criava diálogos entre bichinhos, pessoas e outros seres; colocava e retirava capa nos heróis e, de vez em quando, passava pilotando um helicóptero no céu sobre a cidade.

Logo que me sentei em frente ao Bernardo, entre o sofá onde estavam os pais e o “tapete-cidade”, Gustavo trouxe-me uma locomotiva que puxava vagões-letrinha:

– É do meu nome!

-Que legal! – respondi.

– Falta letra, perdeu. – completou.

Parênteses: o tema inicial de nossa conversa foi o das letras perdidas. Eu me perdi nos corredores do edifício por falta da letra B e, locomotivamente, Gustavo engatou nesse tema. Trouxe-me o trenzinho de letras faltantes do seu nome e, com isso, supus seu recado: “Eu também estou meio perdido” ou “Tornei-me irmão maior, perdi o lugar de pequeno da família” ou ainda “Quem sou eu, agora? Faltam algumas partes”. Gustavo estava novamente me guiando; ali já estava a trilha, ou melhor, o trilho do atendimento psicológico àquela família, sem que eu ainda o tivesse percebido claramente. De qualquer forma, mostrar-me seu trenzinho de letras faltantes era sinal da aceitação e disponibilidade de Gustavo para comigo, pessoa estranha a ele.

Nós, os adultos, conversamos sobre o final da licença maternidade; as composições domésticas e logísticas criadas para dar conta da nova rotina familiar (horários de ida e volta à pré-escola, berçário, empresa, escritório); a escolha da nova escola para o Gustavo recém-saído da creche da empresa. Especialmente a aprendizagem paterna, por vezes angustiada, de cuidar simultaneamente de duas crianças. Anita lembrou-se que a presença de sua mãe, que tirou férias do emprego para ajudá-la no início da licença maternidade, a havia tranquilizado no desafio de cuidar dos dois meninos juntos; com isso reconheceu a angústia de Rodrigo, aprendiz ainda de ser pai de dois filhos. Ele sentia-se também solitário nessa aprendizagem. Outro trilho a ser seguido neste atendimento, aliás, o mesmo, como veremos.

Enquanto conversávamos, Gustavo brincava. Quando, aberta ou veladamente, os pais o mencionavam, ele olhava para nós, interrompia suas narrativas lúdicas, sinalizava estar atento. Volta e meia eu abria o jogo, trazendo Gustavo para a conversa:

– O papai e a mamãe estão querendo entender o que estava acontecendo com você naquele dia lá, em que você ficou pulando no colo do seu pai enquanto ele falava no telefone. Você se lembra?

Em geral, ele não respondia, voltava a brincar tranquilo, como se apenas quisesse entender o que preocupava seus pais, o problema deles. Uma dessas minhas intervenções deu-se quando Anita e Rodrigo queixaram-se de que Gustavo não dormia mais na própria cama, sempre escolhendo a dos pais. A explicação mais frequente para isso é que o primeiro filho sente ciúme do nenê que dorme no quarto dos pais. Clichê psicológico. Disse a ele:

– Por que será que você anda preferindo dormir na cama do papai e da mamãe?

Desta vez ele respondeu. Neste caso o problema parecia ser dele também:

– É que… Que… Eu tive um pesadelo.

– Sério? Você se lembra dele?

Falando afoitamente e gesticulando:

– É que eu estava assim (mostrou corporalmente: em pé) e uma porta abriu sozinha. Tinha uma bola grande forçando para sair pela porta, empurrando, empurrando. Uma bola bem grande, bem grande mesmo, grande… Ia sair por cima de mim…

Gesticulando com os braços, traçava um círculo em torno de si toda vez que dizia “grande”. Com isso, as ideias de “grande” e de “redondeza” ou circularidade da bola associavam-se a ele mesmo, em sua narrativa do sonho. Em mim começaram a aparecer as primeiras possibilidades interpretativas: uma imagem onírica infantil do parto? Aproximações com seu próprio nascimento? Com o de seu irmão? Unindo seu gesto a seu relato verbal compreendi que “o grande” talvez fosse ele mesmo. O sonho dizia sim de um nascimento – do seu nascimento como irmão maior, grande. Ele era agora o recém-nascido irmão grande da família. Gustavo experimentava a dimensão, ou melhor, a esfera do grande e sua relação com o ser pequeno… Dirigindo-me aos pais, disse-lhes:

_ Toda vez que o Gustavo diz “grande”, na sua narrativa do pesadelo, ele se inclui, traça com os braços um círculo em torno de si.

Voltando-me para o Gustavo:

– Que medo deve ter dado!

– É, daí eu corri da bola. Saí correndo!

– Ufa! Que bom!

– Mas a bola vinha atrás. Eu corri. E daí vi o Bernardo no colo da minha mãe e eu pulei no colo do meu pai. E daí a gente correu e tinha um lugar com um montão de árvores… e tinha um montão de terra… um montão de terra saindo…

Rodrigo interrompeu o discurso afoito do menino, dizendo:

– Engraçado, este foi o primeiro sonho que o Gustavo nos relatou. Sonho não, pesadelo. Ele nos contou logo ao acordar, ainda assustado e… – um pouco hesitante, cuidando para não negar o que o filho dizia ter sonhado, completou: – O sonho terminava na visão da bola grande que ia atravessar a porta… não tinha continuação.

Cuidando para que o fluxo onírico do menino não se retraísse em função da ressalva de seu pai, eu disse:

-O sonho está aqui e agora, sendo narrado e sonhado de novo, com medo e tudo. A narrativa faz com que o sonho cresça e chegue em vocês. “Quem conta um conto aumenta um ponto” vale muito para contar e cuidar dos sonhos. O sonho cresceu, mas não apenas ele. O Gustavo cresceu, ou melhor, ele está amadurecendo o sonho…tentando “levezar” o pesadelo, o medo que sentiu e transmitiu a vocês naquela noite. Esta euforia agitada ao contar o sonho deixa transparecer o medo; talvez o medo de ser grande, de passar por cima do pequeno, ou de ser pequeno e ser “atropelado” pelo grande. Continuando o sonho, inventando novas partes em vigília, criando imagens posteriores à visão onírica da bola grande, ele colocou numa ordem as pessoas da família: mamães protegem seus nenês e papais, os maiores…Esta dinâmica não é a única, mas é a que o tranquiliza agora.

Anita disse:

– É, e as árvores… bem, eu adoro árvores, ele sabe disso. Anita parecia sentir-se contemplada pela introdução das árvores na narrativa do filho.

– Um presente narrado para você…- disse eu. Assim como se ele, sonhando acordado, pudesse cuidar de seu susto materno com o pesadelo dele. Na noite do pesadelo, ele não podia ser grande. Ele foi pequeno e correu para a cama de vocês. Mesmo mais calmo, ele continuou antenado com o medo, inclusive com o desconforto que o pesadelo dele causou em vocês, pais. Então, as árvores sonhadas agora, em vigília, são reparadoras, sinalizam um crescimento do Gustavo. Como se ele dissesse: “Mamãe, estou melhor, cresci um pouco e posso cuidar do seu medo por mim. Na minha visão de menino não tem só bola grande ameaçadora, tem também árvores para você.”

Rodrigo, o pai, disse:

– Ah! Sabe o que o monte de terra me lembrou? No sítio do meu pai está sendo construída uma piscina e o Gustavo sobe e desce animado naquele montanhão de terra. Não era a terra do sítio do vovô, filho? Vai ser legal quando a piscina ficar pronta…

– Eu vou e escorrego na montanha grande de terra- respondeu Gustavo mais ligado no atual estágio da construção da piscina do que na finalização dela.

Rodrigo, o aprendiz de pai de dois filhos, era quem estava vendo a piscina. Sonhava acordado com o sítio de seu pai aumentado. Casa paterna maior: seu pai, o avô de seus filhos, fazendo crescer o espaço de acolhimento familiar. Rodrigo encontrou a referência que precisava para cuidar de dois filhos ao mesmo tempo.

 

 

Canção de ninar ajuda a salvar famílias de tsunami

A canção de ninar é uma forma poético-musical que nos chega por transmissão oral. Isso significa psiquicamente um acento na oralidade, no que implica a voz e a boca humanas e no que implica uma pulsão de vida (auto conservação) e um instinto protetor da espécie.
Em dezembro de 2014, Marcelo Ninio redigiu uma matéria, para a Folha de São Paulo, intitulada: “Canção de Ninar – Música infantil que alerta para o risco de tsunami ajudou a salvar habitantes de ilha indonésia da tragédia de 2004”.
É que, em 1907, Simeulue, uma das 19 mil ilhas do arquipélago da Indonésia, já havia sido atingida por um tsunami. A narrativa dos acontecimentos trágicos, bem como os alertas para o perigo iminente passaram a ser cantados por pais para adormecerem seus filhos.
A canção de ninar fala de uma onda gigante (“smong”, no idioma local) e ensina que quando o mar recua é preciso fugir para as montanhas porque haverá brevemente uma inundação. Esta canção foi transmitida de geração em geração e, ao primeiro sinal da onda gigante em 2004, a palavra cantada “smong”, ressoou na memória coletiva. De uma população de 80 mil habitantes, apenas 7 pessoas desta ilha morreram (lembramos que a tragédia de 2004 ceifou a vida de 230 mil pessoas, 70% delas da Indonésia).
Vidas humanas foram salvas por um saber cantado às crianças. Ou seja, a canção de ninar, em seu aspecto funcional, é uma ação profilática, especialmente por seu alcance coletivo. Neste caso, o provérbio, também elemento de tradição oral, foi confirmado: “Quem canta seus males espanta”.

“Anaguú”: o som para adormecer

“Anaguú”

Maria Fernanda cantou, para seu irmão recém-nascido dormir, uma canção de ninar da tradição oral brasileira. A menina estava tão centrada e tranquila que chegou a improvisar um trechinho melódico cantado em “anaguú…anaguú…”. (Ver o vídeo postado neste blog em 12/10/2015)

Selecionei um trecho do livro, A canção de ninar brasileira: aproximações, a ser publicado pela Editora da Universidade de São Paulo, sobre a importância do som da vogal interiorizada “u” e dos sons nasais, que são unidades estéticas universais dos acalantos. Estes sons ocorreram no canto de Maria Fernanda ao entoar espontaneamente: “anaguú”.

“Nas canções de ninar, a presença dos nasais é marcante; mais do que isso, ela é intencional, porque a canção tende a acabar cantada pelo nariz, como que para não despertar a atenção do pequeno ouvinte para as articulações e dicções das consoantes e das vogais. Um som emitido pelas narinas para subtrair o ”ataque” inicial do som, uma forma de arredondá-lo. Assim, versos que se diluem em esparsas palavras que, por sua vez, desfazem-se em sons nasais (cantados e ritmados pelo nariz) é recurso comum à entoação da canção de ninar.

O hum é palavra monossilábica que pode ser pronunciada tanto pela boca quanto emitida pelo nariz. Um som curto que pode ser alongado ou reduzido, percorrer a extensão da voz de seu emissor em glissandos, ascendentes ou descendentes, ou sustentar-se sobre uma mesma altura; um som bem aberto às interpretações de seu entoador, portanto. Uma interjeição capaz de exprimir emoção, sensação, aviso, apelo, capaz enfim de transmitir diferentes mensagens dependendo das expressões faciais, corporais e das variações entoativas que a acompanhem. Unidade linguística compacta à qual se podem atribuir diferentes sentidos e que guarda a possibilidade de substituir frases e enunciados. Escreve Alfredo Bosi: “A onomatopéia e a interjeição teriam sido, quem sabe, formas puras, primordiais da representação e da expressão”[1]. O hum, interjeição, pode ser considerado, então, uma dessas formas primordiais e estaria relacionado, possivelmente, à origem das línguas.

Além disso, o hum é prontamente identificável no início da fala humana: um som emitido pela criança pequena nos prenúncios do sono, como um dos últimos gestos vocais antes do adormecer, espécie de murmúrio final, ou, ao despertar, uma das primeiras vocalizações que acompanha o espreguiçar-se. Som das passagens da vigília ao sono (período no qual ocorre a canção de ninar) e, vice-versa, do sono à vigília (muitos pais cantam também para acordar as crianças). O hum é uma emissão sonora que se prolongará, na vida adulta, às mais diversas situações: expressão de queixa, de espanto, de dor contida, de prazer, de desconfiança, de curiosidade, de indagação, de perplexidade, de hesitação, de afirmação, de negação e, além de todos os outros, som para cuidar do sono das crianças: elemento composicional dos acalantos. O hum parece fazer de tudo um pouco e, para ganhar sentido, necessita da participação do corpo, da voz, do gesto ou do contexto.

No extremo oposto desta gama de significações, o hum inverte-se e pode não significar nada. Justamente aí parece residir sua potencialidade hipnótica: perdendo seus coadjuvantes de significado (a expressão corporal, gestual, o contexto e variações entoativas) o hum nasal torna-se mono-tom e, como uma borracha, apaga, progressivamente, falas, notas melódicas e ruídos; desliga, enfim, a pessoa do ambiente sonoro que a cerca, conduzindo-a ao sono. Nesse caso, o hum perde e faz perder os sentidos; um som gerador de monotonia, propiciador do recolhimento, da internalização e do fechamento – para quem ouve e para quem canta. Se há algo de universal nessa unidade sonora, talvez isso se deva mais à sua potencialidade hipnótica do que à sua vasta abertura para significados. O hum nasal ocupa o lugar da não-palavra e, com isso, parece levar o ouvinte ao fundo amorfo e primeiro da linguagem humana; um elemento que pertenceria ao substrato sonoro das línguas[2].”

 

Em: “O hum nasal: de onde ‘Tudo tudo tudo’ vem”. Texto extraído da tese: Canção de ninar brasileira: aproximações. Link: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-28082012-124302/pt-br.php

[1] BOSI, Alfredo. “O som no signo”. In: O ser e o tempo da poesia. 7ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 50.

[2] O som prolongado do hum assemelha-se às entoações do principal mantra hindu, o aum. No capítulo “Antropologia do ruído”, em O som e o sentido – uma outra história das músicas, José Miguel Wisnik, acompanhando o percurso de Marius Schneider estudioso que encontrou em cosmogonias de diferentes tradições um fundamento musical escreve: “Na origem do universo, o deus se apresenta, se cria ou cria outro deus ou cria o mundo, a partir do som.[…] O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta ou da oralidade em todas as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito).” E, para exemplificar, Wisnik apresenta a significância do som oum para os hindus: “No hinduísmo, que é, como já disse, uma religião intrinsecamente musical, toda constituída em torno do poder da voz e da relevância da respiração (onde o próprio nome do deus, Brama, significa originariamente força mágica, palavra sagrada, hino, e onde todas as ocorrências míticas e eventos divinos são declaradamente recitações cantadas com caráter sacrificial, mantra), atribui-se a proferição da sílaba sagrada OUM (ou AUM), o poder de ressoar a gênese do mundo. O sopro sagrado de Atman (que consiste no próprio deus) ‘é simbolizado por um pássaro cuja cauda corresponde ao som da consoante m, enquanto a vogal a constitui a asa direita e o u a asa esquerda’”. Seja o aum (om, oum), proferido pelos hindus, seja o hum, proferido por aqueles que cuidam do sono de crianças pequenas, essa sonoridade parece conter mesmo algo de universal. (WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras e Círculo do Livro, 1989. p. 34.)

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

 

Avô Josué: um co-terapeuta

                       Avô Josué: um co-terapeuta

Antonio havia nascido há 15 dias.

Era horário de almoço. A Maria das Graças, mãe do neném; o Paulo, seu “namorido” (modo como ela me apresentou o pai de Antonio); e seu Josué, avô materno do pequenino, estavam em casa aguardando pelo atendimento pós-natal. Apresentei-me a todos.

Seu Josué vestia o uniforme da firma. Homem simples, trabalhador em hora de almoço:

– Uma psicóloga para atender a gente em casa?

O atendimento domiciliar pós-natal é apenas mais um acontecimento extraordinário em meio a tantos desencadeados pela chegada do recém-nascido. Tempo de novidades e de estranhamentos.

O neném chorava. Hora da mamada.

Maria das Graças preparava-se para amamentar. Antonio é seu primeiro filho. Ela, então, vinha se descobrindo como nutriz. Além dos mamilos sensíveis e doloridos, sentia medo de não produzir leite.

No dia anterior, haviam pesado o neném no Posto de Saúde:

-E o pior é que ele ganhou peso! – disse-me ela sorrindo, meio sem graça.

Escutei e pensei, buscando compreender: “ o pior?!” Como assim? Era como se o ganho de peso do Antonio desencadeasse nela a satisfação pelo filho nutrido e, ao mesmo tempo, o medo, aparentemente injustificado, de não produzir leite. Seu sorriso foi a expressão justa da alegria pelo ganho de peso do neném e “pior” foi a palavra justa para falar de si mesma: mãe recente, insegura, temerosa e cuidadosa. Supus o que poderia estar interdito, entre a alegria e o medo: o “melhor” seria não existir incertezas, o “melhor” talvez fosse controlar a alimentação do neném com mamadeira, o “melhor” talvez fosse que nada tivesse mudado: voltar a condição feminina de ter seios e não trabalhosas e dolorosas mamas! Mas não, o “pior” é que ser mãe continuaria para sempre, sem possibilidade de retorno, sem ponto final…

– O pior é que ele ganhou peso. Repeti a frase para Maria das Graças enfatizando, com ternura, o termo “pior”.

Seu Josué, que me ouvia com muita atenção, disse:

– A senhora vê o que faz a palavra. Foi a enfermeira da maternidade dizer que a barriga do bebê fazia barulho de fome, foi só dizer que o bebê estava morrendo de fome, que ela (Maria das Graças) ficou pensando coisa. O jeito de um dizer muda o pensamento do outro. Ela mesma foi falar, agora, para a senhora, que o Antônio ganhou peso e disse: “O pior é que ele ganhou peso”. Ela disse “o pior” e não “o melhor”! A palavra, por dentro, muda o que a gente faz fora. Eu acho que ela deveria dar de mamar pensando: “eu tenho leite” e não “eu não tenho”. Virar o lado negativo para o positivo; entende?

O melhor foi que, então, com esse apoio paterno, compreensivo e esperançoso, Maria das Graças chorou e disse:

– Sabe o que dói? Não é o peito, o mamilo ou sei lá mais o que. O que dói é a saudade de minha mãe. Ela faleceu há dois anos. Eu queria falar para ela que agora eu a entendo melhor; eu sei o que é ser mãe. Como é difícil dar de mamar hoje, sem saber se, amanhã, vou ter leite.

– E eu? Sem saber se vou ter emprego amanhã! – Completou Paulo, pai de Antônio.

O pequeno Antônio despertou em seus familiares outras dimensões da oralidade. Os ruídos de sua barriga, na maternidade, ecoaram a incerteza atávica pelo alimento. A torcida materna cotidiana, pela produção de leite para o neném, talvez seja o veio feminino que penetra a origem da oração em que se reza “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Vale lembrar que oral, oração e origem têm a mesma raiz latina: os,orus que significa boca.

 

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado

É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.

 

Nascer de irmã maior

Quando nasce um segundo filho, além da chegada do pequenino, também se inaugura o nascimento do filho mais velho, como irmão. Não apenas ele “ganhou um irmãozinho”, mas iniciou-se como irmão. Um processo feito de muitas descobertas. A começar pelo tamanho físico: muitas mães relatam que, ainda na maternidade, quando o filho mais velho chega para conhecer o irmãozinho, elas observam que o maior “cresceu da noite para o dia”…Ou foi a chegada de um novo neném que deu a referência do que é ser pequeno?! Não é à toa que encontramos, em muitas cidades do interior dos estados brasileiros, o apelido Neném, ou Ném, para o caçula da família, às vezes já com 30 anos!

Não é apenas aos olhos dos pais, porém, que os mais velhos cresceram. Eles próprios procuram “entender” o novo tamanho que têm. Buscam compreender o que é crescer; querem ver fotos de quando eram pequenos; comportam-se como bebês e, ao mesmo tempo, como chefes da casa; sentem-se amuados e pequenos e, em seguida, temem machucar o menor com sua força de gigante; fazem muxoxos de coitadinhos e, em um lance, transformam-se em heróis da casa. Transformação.

Teremos muitas oportunidades, ao longo destas postagens de abordar aspectos do nascimento do irmão maior. Aqui ressalto que isso exige um longo aprendizado e que, no caso dos primeiros filhos, especialmente quando têm entre dois e quatro anos, muitas vezes começa na referência materna e paterna. Imitar o que a mamãe faz e o que o papai faz é o começo do caminho de ser irmão: colocar almofada na barriga e ficar grávida(o); levantar a camiseta e dar de mamar; dizer que o filhinho é meu; protegê-lo de outras crianças que queiram pegá-lo; trocar fraldas; banhar; dar colo; acalantar…

Como pais de família, pais de um grupo de crianças, é muito importante nos perguntarmos o que pensamos sobre “ser irmão”, para podermos acompanhar este processo de construção de uma relação fraterna entre nossos filhos. Processo muito mais profundo do que a imitação dos comportamentos do adulto em relação ao neném, porque repleto de sentimentos intensos relacionados a acolher o outro, abrir espaço para o novo, preservar o que não pode se perder, sentir-se seguro em deixar o outro ser, descobrir a alegria de ser em companhia de alguém…

Certa feita, ao encerrar um atendimento pós-natal, Janete e Marcos, pais da Maria Fernanda (de 3 anos) e do Miguel (recém-nascido), mostraram-me este vídeo. Nele, além escutarmos o canto da menina, “recém-nascida” como irmã, e observarmos seus gestos cuidadosos para acalantar o irmãozinho, escutamos o pedido do adulto para que ela cante de novo. Ela nega, dizendo: “Não precisa”. Para Maria Fernanda havia sido suficiente. A alegria do adulto, que acompanhava uma cena de entrosamento fraterno inicial, é que queria o “bis”.

Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado
É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.