Avô Josué: um co-terapeuta
Antonio havia nascido há 15 dias.
Era horário de almoço. A Maria das Graças, mãe do neném; o Paulo, seu “namorido” (modo como ela me apresentou o pai de Antonio); e seu Josué, avô materno do pequenino, estavam em casa aguardando pelo atendimento pós-natal. Apresentei-me a todos.
Seu Josué vestia o uniforme da firma. Homem simples, trabalhador em hora de almoço:
– Uma psicóloga para atender a gente em casa?
O atendimento domiciliar pós-natal é apenas mais um acontecimento extraordinário em meio a tantos desencadeados pela chegada do recém-nascido. Tempo de novidades e de estranhamentos.
O neném chorava. Hora da mamada.
Maria das Graças preparava-se para amamentar. Antonio é seu primeiro filho. Ela, então, vinha se descobrindo como nutriz. Além dos mamilos sensíveis e doloridos, sentia medo de não produzir leite.
No dia anterior, haviam pesado o neném no Posto de Saúde:
-E o pior é que ele ganhou peso! – disse-me ela sorrindo, meio sem graça.
Escutei e pensei, buscando compreender: “ o pior?!” Como assim? Era como se o ganho de peso do Antonio desencadeasse nela a satisfação pelo filho nutrido e, ao mesmo tempo, o medo, aparentemente injustificado, de não produzir leite. Seu sorriso foi a expressão justa da alegria pelo ganho de peso do neném e “pior” foi a palavra justa para falar de si mesma: mãe recente, insegura, temerosa e cuidadosa. Supus o que poderia estar interdito, entre a alegria e o medo: o “melhor” seria não existir incertezas, o “melhor” talvez fosse controlar a alimentação do neném com mamadeira, o “melhor” talvez fosse que nada tivesse mudado: voltar a condição feminina de ter seios e não trabalhosas e dolorosas mamas! Mas não, o “pior” é que ser mãe continuaria para sempre, sem possibilidade de retorno, sem ponto final…
– O pior é que ele ganhou peso. Repeti a frase para Maria das Graças enfatizando, com ternura, o termo “pior”.
Seu Josué, que me ouvia com muita atenção, disse:
– A senhora vê o que faz a palavra. Foi a enfermeira da maternidade dizer que a barriga do bebê fazia barulho de fome, foi só dizer que o bebê estava morrendo de fome, que ela (Maria das Graças) ficou pensando coisa. O jeito de um dizer muda o pensamento do outro. Ela mesma foi falar, agora, para a senhora, que o Antônio ganhou peso e disse: “O pior é que ele ganhou peso”. Ela disse “o pior” e não “o melhor”! A palavra, por dentro, muda o que a gente faz fora. Eu acho que ela deveria dar de mamar pensando: “eu tenho leite” e não “eu não tenho”. Virar o lado negativo para o positivo; entende?
O melhor foi que, então, com esse apoio paterno, compreensivo e esperançoso, Maria das Graças chorou e disse:
– Sabe o que dói? Não é o peito, o mamilo ou sei lá mais o que. O que dói é a saudade de minha mãe. Ela faleceu há dois anos. Eu queria falar para ela que agora eu a entendo melhor; eu sei o que é ser mãe. Como é difícil dar de mamar hoje, sem saber se, amanhã, vou ter leite.
– E eu? Sem saber se vou ter emprego amanhã! – Completou Paulo, pai de Antônio.
O pequeno Antônio despertou em seus familiares outras dimensões da oralidade. Os ruídos de sua barriga, na maternidade, ecoaram a incerteza atávica pelo alimento. A torcida materna cotidiana, pela produção de leite para o neném, talvez seja o veio feminino que penetra a origem da oração em que se reza “O pão nosso de cada dia nos dai hoje”. Vale lembrar que oral, oração e origem têm a mesma raiz latina: os,orus que significa boca.
Silvia De Ambrosis Pinheiro Machado
É psicóloga; especialista no atendimento de grupos familiares recém-nascidos; psicoterapeuta de adultos e fundadora do Primeiro Movimento.